Você já entrou em uma loja de roupas, recebeu olhares de julgamento e não encontrou peças que servissem para o seu tipo de corpo? Pessoas com deficiência passam por isso constantemente pela indústria da moda ainda não pensar o suficiente em peças voltadas à suas necessidades. É aí que a chamada “moda inclusiva” entra.
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O conceito de moda inclusiva começou lá em 2014, quando a psicóloga Danielle Sheypuk estampou as manchetes de jornais ao se tornar a primeira modelo em cadeira de rodas da história a desfilar na Semana de Moda de Nova York. Desde então, marcas começaram a pensar mais em desenvolver peças que levassem em conta as necessidades físicas e psicológicas de cada indivíduo, indo além do funcionalismo e considerando também fatores como design, estilo e tendências do mercado fashion.
mas como é na prática? funciona?
Rebeca Costa é modelo, ativista e influencer. Ela tem nanismo, trabalha exaustivamente pela causa e é apaixonada por moda. No entanto, tem muita dificuldade em encontrar roupas estilosas e confortáveis que sirvam em seu tipo de corpo.
“Eu amo a moda. Eu amo a liberdade que eu me dou de possuir diversas estações, versões e me reconstruir a cada vez que sinto vontade. Contudo, existem barreiras, e no meu tipo de nanismo, acondroplasia, os membros superiores e inferiores são curtos, sendo necessário ajuste em todas as peças alongadas, como calças, casaco e etc“, explica.
“Olho a moda como minha melhor amiga, não me encaixo nela, mas vou encaixá-la em mim, vou adaptando até que ela me abrace de acordo com o meu corpo. Infelizmente ela não é inclusiva ainda, percebendo que a mesma é exclusiva em seus meios. A moda é muito precária para a gente e conseguir uma roupa perfeita é muito mais caro. Por exemplo, pago R$ 300 em um jeans e R$ 150 num conserto”, continua Rebeca.
Lucília Machado é outro exemplo de quem precisa usufruir de uma moda mais inclusiva. Jornalista e presidente da Comissão UFF Acessível, ela ficou tetraplégica em um acidente de carro e, desde então, teve de se redescobrir quanto ao estilo. Ela também compartilha de desafios na hora de encontrar roupas para vestir, além da falta de representatividade em termos modelos com deficiência, assim como ela.
“A moda, da maneira que ela é produzida hoje pelas grandes corporações e organizações que não enxergam as pessoas com deficiência, não contribui para a minha autoestima a partir do momento que eu não tenho um provador em uma loja em que eu entre com a minha cadeira de rodas. Além de que as roupas não são pensadas e produzidas para a minha deficiência ou para facilitar na hora de eu me vestir ou de ter contato com o modelo que está apresentando aquela peça.”
Rebeca também evidencia os preconceitos que já enfrentou dentro do mercado:
“Acho que na maioria das vezes quando vou comprar casacos e calças. Como eu disse anteriormente, compro uma peça por um preço e o ajuste sai quase do mesmo valor duplicando ou triplicando o real valor do produto. Ah, tem vendedores também que não nos atendem, pois já afirmaram na cabeça deles que não somos consumidores reais, achando que usufruímos peças infantis. Mas na real, não é, mas independentemente se fosse, tinha que ter respeito pois o consumo existe sendo pra própria pessoa ou até presente que a mesma queira dar, não é mesmo?”.
há uma luz no fim do túnel
Pequenas marcas voltadas à inclusão estão surgindo, mesmo que ainda sejam poucas. É um avanço necessário já que hoje em dia pessoas com deficiência representam pelo menos 15% da população mundial. A Equal, criada pela estilista carioca Silvana Louro, é um exemplo disso.
A melhor forma de falar de Moda Inclusiva é através da empatia. Ao se fazer a pergunta: “E se fosse com você?” , em um minuto a gente entende. Porque sentir desconforto e dor para se vestir, não combina com a moda. A moda é sinônimo de comunicação, representatividade e autoestima. Então, precisamos humanizar esse espaço – Silvana Louro
Silvana conta que nunca tinha trabalhado com isso até 2015, quando um trabalho a fez mudar sua perspectiva, dando a ideia de construir a Equal. “Fui justamente trabalhar em um projeto com paratletas. Lá vivenciei as dificuldades que eles tinham para se vestirem. Muitas vezes com machucados provocados pelas roupas convencionais“, conta.
“Foi aí que tive a ideia de produzir um uniforme para eles. Assim, criei e produzi o primeiro uniforme paralímpico do mundo em 2015. Vestindo a delegação fluminense na sua viagem para as Paralimpíadas Escolares de Natal/RN”.
Quanto ao processo de conseguir desenvolver de forma perfeita algo que atendesse às necessidades de pessoas com deficiência, a estilista – que não possuem deficiência – explicou que teve que se aprofundar em muito estudo e comprometimento:
“Busquei as próprias pessoas com deficiência para entender suas necessidades reais. Fui recebida em várias Instituições sérias, fiz questionários, me integrei nas rotinas e procedimentos. Fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais também me assessoraram quanto ao funcionamento dos órgãos, artérias, movimentos possíveis dos corpos de pessoas que não ficavam de pé. Os desdobramentos para paralisados cerebrais, amputados e visuais foram naturais. Cada tipo de deficiência tem um universo próprio e eu mergulhei completamente em cada um deles. Essas pesquisas para os uniformes adaptados paralímpicos durou 2 anos entre desenvolvimento e campo. Inclusive as etiquetas em braille e fundamentou todo meu processo de criação”.
Lucilia é uma consumidora da Equal e explica o quanto a marca foi importante em sua vida: “Me mostrou um novo nicho de mercado e que tem pessoas preocupadas em democratizar a moda e trazer informações sobre o assunto. Eu acho que com certeza abre uma porta de esperança para que possamos ser vistos e sentidos como pessoas normais, que nossa deficiência não é nenhum empecilho para mostrarmos nossa competência. Que possamos desfilar por ai com nossas cadeiras, bengalas, sem medo de ser feliz e de estar errando na hora de vestir uma roupa“.
Rebeca também passou por boas situações mesmo dentre as dificuldades e preconceitos. Ela diz que se sente feliz por saber que existem pessoas que se preocupam com a singularidade de cada corpo, mas faz críticas sobre o que realmente algumas marcas pretendem ao mandar e-mails e convidá-las para algum tipo de ação:
“Eu espero que as pessoas entendam que não basta falar, é necessário fazer. Precisamos agir. É preciso abraçar e lembrar das diferenças.” Em maio deste ano, o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) lançou os uniformes da delegação brasileira que disputará os Jogos Paralímpicos de Tóquio.
Rebeca conta também que ao vestir o uniforme do CPB ela se sentiu abraçada “Ver uma mulher como eu em uma campanha como essa é um choque de realidade, mas um choque positivo.” Em 2019 a influencer foi uma das convidadas para um desfile inclusivo no São Paulo Fashion Week e desde então tem colecionado momentos memoráveis:
“Foi um divisor de águas e a única vez que eu vi de fato a moda diversa sendo aplicada: corpos diversos, sem serem classificados por sua condição. Foi lindo e um dos momentos eternizados no coração”.
como a moda pode ser mais inclusiva?
Rebeca, Silvana e Lucilia apontam a falta de interesse em estudar e investir em marcas mais inclusivas como o maior problema para a moda não abranger todos os corpos. Outras empresas pequenas como a Equal possuem dificuldades em se manter no mercado:
“Somos pequenos empresários que têm um propósito e muito amor envolvido no nosso trabalho. Precisamos de pessoas que acreditem e tragam investimentos, espaços e divulgação para que possamos ter a oportunidade de crescer. Todos nós um dia precisaremos de alguém para nos vestir. Esse é um fato. Nascemos e morremos dependentes. Porque não vivenciarmos situações assim com plenitude, autoestima e conforto?”.
“É fundamental que empresas pensem uma moda igualitária, que possa chegar em todo mundo e seja bonita, colorida, que todos tenham acesso. Moda é vida, é criatividade, é muito importante chamar a atenção para esse tipo de iniciativa“, ressalta Lucília.
A jornalista também explica a importância do estudo os corpos, já que pessoas com deficiência não são todas iguais e que cada uma terá suas singularidades a serem pensadas. “Hoje, por exemplo, eu não uso mais vestidos porque não existem vestidos muito no padrão e na altura para a pessoa sentar na cadeira de rodas. Um vestido ‘normal’ quando eu sentar ele vai ficar mais curto, ele tem que ser pensado para a cadeira“.
“Pessoas com deficiências físicas são muito diferentes umas das outras, minha medida por exemplo é diferente de uma pessoa que não tem pé. São certos padrões que as industrias ainda não prestam atenção“, conclui.