Já olhou para alguém e pensou: o que passa na cabeça dela? No caso de Bunny, esse “mistério” pode, muitas vezes, ser resolvido por meio de botões. Com quase seis milhões de seguidores no TikTok, a cachorrinha da raça Sheepadoodle conquista muito mais do que números na rede social – mas principalmente o afeto de quem a acompanha se comunicando por um teclado.
Quem fica responsável por compartilhar o dia a dia de Bunny é sua tutora, Alexis Devine. Desde quando a cadela tinha 8 meses de vida, ela a ensina a utilizar um mecanismo com sons pré gravados para expressar suas vontades. Inspirada em outro perfil parecido, de uma fonoaudióloga, a Christina Hunger, tudo começou com apenas um botão, pelo qual a cachorrinha indicava quando gostaria de sair para fora de casa.
Atualmente, acompanhamos o processo de comunicação da Bunny com 70 botões diferentes, que apresentam palavras como “agora”, “mãe”, “bola”, “brincar” e muitas outras. Algumas vezes a cadela permanece apertando apenas uma tecla até conseguir o que deseja e, em outras, até organiza os sons que ouve em combinações curtas.
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“Há momentos e dias em que parece que ela está apenas explorando os botões. Em que ela está juntando combinações de palavras que nunca usou antes. Ela vai pressioná-los e vai olhar para mim esperando por uma resposta. Se não fizer sentido, vou pedir que ela esclareça, e ela vai tentar uma combinação diferente. Portanto, há muita exploração. E acho que os céticos podem olhar para isso e dizer ‘Bem, isso é uma prova de que ela não tem ideia do que está acontecendo’. E, para mim, é a prova de que ela tem disposição e vontade de aprender. O fato de que ela está explorando, o fato de que ela está tentando, mostra que ela quer ser capaz de se comunicar dessa forma”, afirmou Alexis ao portal Brut Media.
@whataboutbunnyThe fine art of negotiation😂 ##smartdog ##talkingdog ##fyp ##walk♬ original sound – I am Bunny
Mas como funciona todo esse processo de comunicação? Para entender o que está por trás do lado científico do fenômeno no TikTok, a todateen conversou com Natalia de Souza Albuquerque, pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP e pós-doutora pela universidade, na área de comportamento animal. Ela explica que sua paixão por animais vem desde muito cedo.
“Sempre fui apaixonada por animais, todos os animais. Sempre gostei de observá-los, então ficava olhando o que eles estavam fazendo, pensando no que eles estavam sentindo e o que eles estavam querendo. Desde muito pequenininha eu já queria estudar comportamento animal, eu dizia que ia ser psicóloga de bicho”, compartilhou entre risadas.
mas, afinal, como os animais se comunicam?
Toda essa paixão fez com que Natalia se dedicasse e estudasse muito para buscar respostas às diversas perguntas envolvendo o comportamento e a cognição animal. Ela explica que existem muitos estudos para entender como, de fato, os animais se comunicam – mas ainda ressalta a complexidade existente nesse processo.
Questionada sobre como funciona a comunicação quando falamos dos animais, a pesquisadora volta dois passos: há uma diferença entre a análise desse processo entre animais da mesma espécie e entre espécies diferentes. E um claro exemplo disso, exposto por Albuquerque, é a ação de mostrar os dentes.
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Em uma interação entre cachorros, esse ato é uma expressão de agressividade, um sinal muito eficiente para conduzir a comunicação entre eles. Porém, pensando em nós, seres humanos, exibir os dentes geralmente é uma atitude que expressa uma emoção positiva. E essa simples diferença exemplifica como é complexo analisar uma comunicação entre seres de diferentes espécies.
“Imagina só, um cachorro nasceu, tá lá pequenininho, crescendo e desenvolvendo toda cognição dele, todas as formas e capacidades que ele tem de interagir com o mundo. E ele tem que aprender não só que mostrar os dentes é comunicativo, mas entender que quando ele olha para um cachorro, mostrar os dentes é ruim e, quando ele olha para uma pessoa, mostrar os dentes é bom. Então ele tem que usar de mecanismos, formas, estratégias comportamentais e cognitivas diferentes, para interagir com membros da mesma espécie e membros de espécie diferentes.”
podemos confiar na comunicação de bunny?
Trazendo essa teoria para a prática, Natalia pede por atenção e pensamento crítico na hora de analisarmos a comunicação que Bunny pratica pelo teclado. “Essa brincadeira que a tutora faz com a Bunny tende a passar a ideia de que ela tá quase que fazendo um experimento científico, mas, na verdade, ela não está”, diz.
A pesquisadora destaca alguns fatores para levarmos em conta ao examinar os vídeos da cachorrinha, como a existência de edições ao longo do conteúdo. Ela afirma que, muitas vezes, esses cortes podem acabar passando diferentes mensagens e exibindo que o processo final que vemos no TikTok não é completamente orgânico.
“A gente não sabe quanto tempo passou para fazer aquele vídeo, de repente ela está ali várias vezes durante muito tempo e a Bunny está apertando um monte de teclas e a gente não sabe disso. Eu não estou falando isso como se a tutora estivesse querendo passar uma imagem errônea, mas às vezes, inconscientemente, a gente acaba interpretando alguns sinais de forma equivocada”, pontua.
@whataboutbunnyCheck your doggy’s paws if you live in an area with foxtail ##ouchie ##talkingdog ##cutedog ##communication ##doggyanthem♬ original sound – I am Bunny
“Eu acho que a gente não precisa ser cético […] Mas eu acho que a gente precisa ter esse discernimento”, continua. A pesquisadora ainda traz outros pontos para levarmos em conta quando observamos o processo de Bunny, como nosso desconhecimento sobre a forma pela qual a cachorrinha foi treinada: “De repente ela [tutora] fala um comando, como ‘out’, e a Bunny vai lá e aperta três teclas. Isso pode ser uma via.”
Já outra questão que merece atenção são as dicas não conscientes que a tutora pode acabar transmitindo para a cadela: “A gente passa dicas não conscientes, mas passa dicas para os animais e eles pegam essas dicas. Às vezes pela direção do nosso olhar, pela nossa empolgação, pela forma como a gente age […] Então, essas dicas inconscientes podem levar o cão a estar ali, esperando. E ela [Bunny] vai se aproximando de um grupo de teclas e vê a tutora ficando entusiasmada e vai e aperta, o que é extremamente inteligente. Mas não seria o que tanto a tutora quanto outras pessoas estão afirmando que a Bunny faz.”
“cada qual com sua inteligência”
Um ponto que Natalia também ressalta é a interpretação que Alexis dá para algumas atitudes de Bunny. Em um determinado vídeo, a cachorrinha aperta os botões de “play”, “brincar” em português, e “poop”, “fezes” na tradução. Em seguida, a tutora analisa que sua cadela clicou naquela tecla porque sua dona acabara de soltar um pum. Porém, a pesquisadora diz que se sente “receosa de ver esse tipo de interpretação.”
@whataboutbunnyWell this is embarrassing 😳😬 ##embarrassing ##fartjokes ##doggos ##fyp ##dogsoftiktok♬ original sound – I am Bunny
“Ela pode ter aprendido a palavra ‘play’ e ‘poop’, mas eu realmente não acredito que um cão vá sinalizar se, por acaso, ela soltou mesmo um pum […] A flatulência é algo extremamente natural que os cães fazem e não tem reação nenhuma quando fazem, no máximo eles se cheiram, não anunciam, não tem reação simplesmente. E porquê ‘play’ e ‘poop’ seria pum?”, questiona Albuquerque. “Eu pensaria mais que ela tivesse falando de brincar ou de ir pra área de brincar porque ela quer fazer cocô”, continua.
Tendo esse vídeo como exemplo, a especialista em comportamento animal pontua que “intencionalmente ou não, a tutora coloca muito significado no que a Bunny faz”. “Eu fico até um pouco chateada porque, se a Bunny aprendeu tantas teclas, é fascinante – mas até diminui um pouco o significado e a importância disso. Então parece que ela cria um sentido, se ela soltou um pum, se ela não soltou um pum, mas ela cria esse sentido. A Bunny pode ter aprendido que a tecla ‘play’ significa ‘play’, pode ter aprendido a tecla ‘poop’ que significa ‘poop’ e poderia usar essas teclas de forma funcional. Mas realmente eu não acredito que ‘play’ e ‘poop’ tenha alguma coisa a ver com a tutora ter soltado um pum”, completa.
“Eu sou uma pessoa do grupo de que acredita que os animais são extremamente complexos e extremamente inteligentes, mas cada qual com sua inteligência. A gente tem uma tendência a achar que um animal só é inteligente se ele é inteligente como a gente, se ele tem a capacidade cognitiva igual a nossa. Então a gente acaba, nessa nossa tentativa de que os outros animais sejam muito parecidos com a gente, deixando transparecer um preconceito que a gente tem em relação às outras espécies, o que seria o especismo – o preconceito que é uma discriminação com base na espécie do animal. Os animais são fantásticos, não precisam ser parecidos com a gente pra ter valor ou para serem fantásticos e serem extremamente inteligentes.”
Levando em conta a investigação científica atual, Natalia ainda defende que “não há evidências de que os animais não humanos sejam capazes de agregar” alguns tipos de significados. Assim, fica claro que muitas das análises das ações de Bunny são provenientes da interpretação de Alexis, não de um lado científico do processo.
estudo da cachorrinha sofia
Entretanto, a ciência já caminha na busca de mais respostas para entender o que está por trás do comportamento animal. O próprio fenômeno no TikTok inspirou pesquisadores da Universidade da Califórnia a criarem um projeto (How.TheyCanTalk.Org) para estudar cachorros como a Bunny.
O objetivo dessa pesquisa é entender se não-humanos podem realmente usar a linguagem falada para se comunicar e ainda como funciona o processo de cognição e comunicação dos cachorros. Para os pesquisadores em questão, a velocidade com que um animal aprende a associar o botão “outside” com a ação de ir para fora da casa pode revelar muito mais do que o simples fato de ele ter apertado o botão.
E a cachorrinha Sofia é apenas um dos exemplos que mostram como o Brasil também tem se dedicado à pesquisa na área de comunicação animal. A cadela vira-lata foi treinada a utilizar botões desde muito pequena e participou de vários estudos no Instituto de Psicologia da USP, que foram “completamente não invasivos”, como explica Natalia.
Albuquerque citou um dos estudos que buscava entender algumas das variáveis envolvendo esse processo de comunicação de Sofia. Quando a cadela já estava adulta e havia aprendido as associações do seu teclado, a pesquisadora Carine Savalli trouxe um questionamento: na hora de utilizar a teclas, a cachorrinha levava em conta se a pessoa com quem estava se comunicando podia ver o teclado? E a resposta é sim!
“O que quer dizer que, quando a Sofia ia usar o teclado, ela prestava atenção se a pessoa estava ou não enxergando, se tinha a possibilidade dela enxergar esse teclado”, conta Natalia.
“Então esses resultados mostram que a Sofia, de alguma forma, usava esse teclado de maneira intencional, então ela tinha uma intenção de utilizar esse teclado. Então se ela queria água, se ela ia apertar a tecla água, ela levava em consideração se a pessoa poderia ou não ver que ela estava apertando o teclado”, esclarece a pesquisadora.
“Isso é fantástico. E a Bunny muito provavelmente tem essa habilidade. Provavelmente ele passou por um período de treinamento. Eu não vejo a possibilidade, hoje em dia, de um cão aprender de forma orgânica a interagir com o teclado dessa maneira. Então precisa sim de um treinamento, de um trabalho ali, intensivo para que esse cão aprenda essas associações”, completa.
por que é um fenômeno?
O que explica os seis milhões de seguidores que acompanham todo esse processo complexo de comunicação com Bunny? Natalia expõe alguns dos motivos para esses vídeos fazerem tanto sucesso nas redes sociais, como a vontade das pessoas de entenderem o comportamento dos animais: “É muito interessante, é um outro animal conseguindo se comunicar como a gente se comunica.”
“Esses vídeos chamam muita atenção porque a gente tem uma necessidade de aproximação com a natureza, de aproximação aos animais. Então quando vemos um vídeo como esse, é uma forma que a gente tem de se aproximar aos animais, seja observando, seja entendendo, seja criando questões, seja depois brincando com o próprio cachorro em casa, seja se sentindo próximo da Bunny.”
Porém, a pesquisadora também ressalta que muitas pessoas ainda têm a vontade de terem o poder de explicar o comportamento animal. “Elas acham que já entenderam o cachorro e as relações entre cães e pessoas, por exemplo, já entenderam a forma como o cão pensa, como o cão sente. E aí isso cria um certo bloqueio entre a pessoa e a realidade do cachorro. Cria muitas vezes frustrações em determinados momentos, com certas expectativas que os cães não podem alcançar. E, ao mesmo tempo, elas deixam de enxergar uma série de complexidades que os cães têm e mostram pra gente, porque elas estão presas aquele pacotinho lá do que elas acreditam ser o correto”, analisa.
@whataboutbunnyI just want you all in the same hecking room ok? ##together ##family ##dogsoftiktok ##talkingdog♬ original sound – I am Bunny
Albuquerque ainda destaca que pode existir a questão da antropomorfização, ou seja, “quando a gente atribui a esse animal não humano características que são nossas, humanas”, como explica a pesquisadora. Ela retoma o exemplo citado anteriormente, da comunicação envolvendo os botões de “play” e “poop”.
“Eu acho que tem muito a ver com o que eu falei sobre a vontade de criar um sentido para as coisas. Será que é aquilo mesmo ou será que o que a gente está falando e explicando algo da forma como a gente quer acreditar que aquilo seja? Então a gente quer acreditar que o cão quando cheira um pum do ser humano, ele fica incomodado como a gente fica incomodado o pum de outro ser humano, e aí ele vai falar em um tom sarcástico, vai dizer ‘ah eu senti o cheiro do seu pum, to sentindo’. E na verdade pode ser que não seja.”
o método pode ser reproduzido em casa?
Ficou com vontade de testar esse método em casa? Natalia garante que o teclado pode servir como um ótimo enriquecimento ambiental, cognitivo, comportamental, relacional e social. No entanto, ela pontua que o treino precisa ser realizado “de uma forma positiva e apropriada para aquele animal, respeitando também o tempo e o espaço do animal.”
“Pode ser muito importante também, inclusive, para melhorar a relação entre o cão e a pessoa. Vai aproximar, ao fazerem uma atividade juntos, os dois vão aprender juntos também. Então pode ser uma ótima atividade, ainda mais nesses tempos de pandemia”, compartilha. A especialista alerta que, para aplicar em casa, é preciso entender todo o método e suas limitações, sabendo lidar com as possíveis frustrações do processo e respeitando sempre o bem-estar do cão.
“Para a pessoa que quer utilizar desse teclado, é importante que ela saiba e entenda como se chega até o animal responder às associações, que existe um longo treino para isso. […] Então a pessoa precisa entender que existem limitações do método e também precisa lidar com as frustrações dela […] O cachorro não vai demorar 5 dias pra aprender uma tecla, vai demorar 50 dias para aprender uma tecla. Isso tudo é natural e isso a gente não vê, quando a gente vê já é algo por exemplo como a Bunny, que já está lá usando a tecla. Mas mesmo ele deve ter que passar por um treino sempre constante. Porque senão ele perde também essas associações.”