Bárbara Correa conheceu um cara bem sensível aos 17 anos. Quando recorda do começo do relacionamento, percebe que algumas coisas já lhe davam sinais do que ainda estava por vir. “Minha ex é louca” foi uma das frases que mais escutou durante o início do envolvimento, assim como as conversas emotivas que a colocavam em um pedestal durante um desentendimento. Com problemas familiares e questões que precisavam ser resolvidas na terapia, o parceiro dizia que sua cura era a presença de Bárbara em sua vida. E ela acreditou.
Com o tempo, o excesso de paixão transformou os dois em um só, e Bárbara começou a perceber que não podia quebrar isso. Sair sem ele não era uma opção, estar com homens também não, incluindo seu amigo homossexual de longa data. A garota começou a perceber que para continuar com ele precisava se anular e deixar de comparecer a eventos como festas na faculdade. “Ele dizia que eu fazia o que queria, não era meu pai. Mas, ele deixava bem claro que não gostava da minha melhor amiga. Também dizia que eu podia ir para onde quisesse, mas se eu decidisse ir para a festa sem ele junto, iria criar motivo para brigarmos”.
Bárbara não podia usar as roupas que queria, e sempre que brigavam, ela logo dava um jeito de fazer as pazes porque o parceiro começava a chorar, fazendo com que ela se sentisse culpada pela “situação que tinha criado”. Para evitar esse cenário, ela passou a deixar de fazer o que queria, mudou seus gostos e se afastou de seus amigos. Assim, não criaria “motivos” para discussões.
Mais um tempo se passou e os choros começaram a perder lugar para um comportamento mais agressivo, e com ele, o término definitivo. Em seguida, a fase mais difícil para Bárbara: aprender a viver novamente se colocando como prioridade. Depressão, ansiedade e transtornos alimentares tomaram conta do processo, causados não só pelo corte da dependência emocional que tinha com o parceiro, mas também a culpa que começou a sentir por ter permanecido dois anos em uma relação abusiva.
A todateen conversou com outras mulheres que se identificam com Bárbara, mas que preferem deixar seus nomes em anônimos. A. tem 41 anos e passou por quatro relacionamentos tóxicos, nos quais incluíam não só agressões físicas como também psicológicas. A advogada foi mãe aos 16 e teve que ouvir diversos tipos de comentário ofensivos dos parceiros em relação ao seu corpo, como também piadas que a rebaixavam e tentavam a desencorajar de continuar os estudos ou busca por emprego.
Mesmo estando em contato com a Lei Maria da Penha – que pune a violência doméstica – a advogada não encontrava forças para sair do primeiro relacionamento que lhe dava hematomas difíceis de serem escondidos e explicados. Com o fim desta relação, ela acabou se envolvendo com um outro parceiro que não lhe agredia fisicamente, mas lhe comparava com outras mulheres: “Ele dizia que mesmo que eu me arrumasse, jamais ficaria igual uma amiga que eu tinha, já que estava com 28 e ela 25”.
Depois desse, foram mais dois namorados que tentavam a controlar a qualquer custo. A. passou por uma depressão grave, encontrando no filho e nos cachorros adotados força para continuar vivendo. Ela não desistiu dos estudos, e hoje acredita ter se livrado dos ciclos custosos dos relacionamentos abusivos. Não desistiu do amor, reencontrou um amigo de infância e atualmente se encontra em um novo relacionamento. Entretanto, toda vez que posta uma foto no Facebook e um homem reage, seu primeiro ex a liga cobrando explicações.
V. tem uma história diferente, conheceu seu ex quando ainda estava no ensino médio, e desde o começo ele reforçava que não queria nada com ela, era “desapegado”, sabe? Mas com o tempo, o príncipe inabalável se mostrou vulnerável, e quando um término ameaçava acontecer, a asma e depressão do garoto vinham à tona.
Bem humorado, ele gostava de fazer piadas, só que elas sempre colocavam a parceira para baixo, principalmente em meio aos “incentivos” para que ela fosse à academia, afinal, ele não ficaria com alguém acima do peso considerado padrão. Para provocar, de vez em quando ele a chamava pelo nome da ex, fazendo com que ela lembrasse quem estava no controle.
V. não podia demonstrar qualquer sinal de independência, sonhos que não o incluíam eram como provocar uma briga, aliás, o medo era um sentimento constante para ela na relação. “Se eu estava cansada e esquecia de dar bom dia, ‘boom’. Já faz cinco meses que a gente terminou e minha autoestima ainda está no chão”.
“Tóxico” e “abusivo” são termos que vêm sendo cada vez mais mencionados quando o papo é sobre relacionamentos, e com eles, a discussão sobre suas definições. Afinal, o que é “normal” em uma relação? Como diferenciar um problema que pode ser resolvido de algo que se torna prejudicial à saúde mental?
O grau de seriedade entre as opções mencionadas traz a sensação de que a resposta seja óbvia. Mas acredite, não é. Para compreender melhor o que seria um relacionamento abusivo, conversamos com a psicóloga Bia Sant’Anna, especialista em neuropsicologia e em terapia cognitivo-comportamental, e o psicólogo Alexandre Bez, especializado na área de relacionamentos.
O que faz de uma relação tóxica?
Doutora Bia Sant’Anna: Normalmente um relacionamento é considerado tóxico quando existe uma relação de poder sobre o outro. É comum associarmos relacionamentos tóxicos aos amorosos, mas também podem acontecer entre amigos e familiares.
O que mais se observa é uma tentativa de controle em relação aos comportamentos, valores e decisões de uma outra pessoa. Por esse motivo, uma relação tóxica poderá facilmente se tornar uma relação abusiva, causando diversos sofrimentos, mal estar e sérias consequências psicológicas.
Até onde uma relação pode ser considerada conflituosa e quando ela passa a ser tóxica?
Doutor Alexandre Bez: Uma relação conflituosa pode ser resolvida desde que haja um empenho dos envolvidos para que os conflitos sejam identificados, tratados e não se repitam. Lembrando que os conflitos fazem parte de qualquer relação, a questão é como eles serão tratados.
As relações conflituosas podem gerar uma “situação tóxica temporária”, mas não necessariamente estabelecer uma relação tóxica efetiva, basta apenas sanar as causas, após as mesmas serem isoladas. As relações tóxicas são classificadas pela “extensa sensação de tortura – mental, ou psicológica”.
Quais são as principais características de uma relação tóxica?
Doutor Alexandre Bez: Todas as relações tóxicas incluem agressão, geralmente em relação à figura feminina, seja verbal, física, psicológica ou sexual. Os principais indícios são:
– Apontamentos: o parceiro aponta “características” na mulher, as quais ele não aprecie ou não valorize.
– Críticas: tudo aquilo que ela faz, ele condena. Independentemente do que seja, há mesmo o prazer da colocação.
– Comparação: No intuito em ridicularizá-la, ele irá compará-la com alguma mulher que ele julgue inferior.
– Forçar a admitir: Ele irá induzi-la (de maneira explícita ou não) para que admita que não há tanta habilidade ou competência assim.
– Tom de voz : Indispensável para qualquer agressor clássico! Visa através desse, a intimidação.
– Humilhação: Coloca a mulher para baixo reduzindo a sua autoestima.
– Verbalização mais rígida: se dá de maneira crescente, sendo o primeiro estágio mesmo da violência contra a mulher.
– Rispidez no contato físico: Pode ser acompanhado ou não de contato, que vai desde puxar os cabelos, segurar o braço, empurrar o corpo da mulher, desferir tapas, ou ainda socos com prejuízos nítidos de hematomas! Este é o segundo estágio da violência contra a mulher!
– Contato Sexual Agressivo: O último estágio da violência contra a mulher. Esse é o mais sério porque o sexo nunca é mesmo consentido e ele o usa para aumentar a sua força e poder sobre a mulher em etapas mais severas, podendo ser acompanhado de um assassinato após a atividade sexual.
Dá para administrar a relação (tóxica) sem deixar de acabar com o namoro? Quando é melhor romper?
Doutor Alexandre Bez: Não! Não há como associar uma relação saudável a um convívio tóxico. A hora de acabar é quando se percebe que o conflito é muito mais sério, deixando de ser uma fase de divergência.
A partir do momento que o primeiro estágio de verbalização mais acirrada se revela presente, já é hora do rompimento ser mesmo efetivado! Pois não haverão mudanças de caráter e a mulher poderá ser vitimizada, em um prazo muito curto de tempo, pelo segundo estágio (violência física) ou terceiro (estupro doméstico).
Se a leitora é a pessoa responsável por tornar a relação tóxica, o que ela pode fazer para construir uma relação saudável?
Doutora Bia Sant’Anna: Pessoas tóxicas normalmente são mais autocentradas e costumam focar-se apenas nos próprios interesses. É importante observar se existe reciprocidade na relação ou foco excessivo na intensificação das emoções negativas (reclamações, críticas e cobranças).
Abrir o diálogo na relação é um bom começo, ouvir e entender como o outro se sente e o impacto que suas ações tem na vida da pessoa. Se não conseguir ter controle sobre suas atitudes é importante procurar uma ajudar especializada para entender qual é a raiz, o que causa essa necessidade de controle.
O que é uma relação saudável, afinal de contas?
Doutora Bia Sant’Anna: Uma relação saudável é aquela que te faz crescer, te faz aprender e que traz à tona o seu melhor. Aquela em que existe respeito e carinho mútuos. Que você pode ser você mesmo, sem censuras ou reprovações, e que é pautada no respeito mútuo, aceitando as diferenças.
Qual tipo de terapia buscar quando se é a vítima?
Doutor Alexandre Bez: A psicoterapia sempre é indicada, mas a faça com profissionais da saúde especializados (psicólogos, psicanalistas, psiquiatras). O psicólogo irá estudar os comportamentos, podendo também atuar em conjunto com o psiquiatra. O psicanalista irá averiguar as causas das ações no inconsciente, acompanhado ou não de tratamento com medicamentos.
Minha amiga está em uma relação tóxica. Como posso falar com ela sobre isso para lhe ajudar?
Doutora Bia Sant’Anna: Muitas vezes é difícil a pessoa perceber que está dentro de um relacionamento tóxico, para ajudar alguém que está passando por isso, o primeiro passo é se mostrar disponível para escutar sem julgamento e buscar uma rede de apoio para auxiliar para se libertar dessa relação que é prejudicial.
E se você ainda acha que os relacionamentos tóxicos ou abusivos estão muito distantes da sua realidade, selecionamos alguns trechos da entrevista com as meninas anônimas. Pedimos para que os especialistas explicassem qual o problema presente em cada uma delas. Algumas demonstram uma agressividade mais nítida, outras são comuns em relacionamentos.
“Ele começou a me diminuir pelos meus gostos. Minha participação nos esportes era uma desculpa para usar shorts, e meu trabalho como representante era uma tentativa de chamar a atenção, segundo ele”- H. R.
Doutora Bia Sant’Anna: Se você era assim no início do relacionamento, foi por esta pessoa que ele se apaixonou. Querer mudar o que nos faz sermos quem somos é um exemplo de tentativa de controle e cerceamento. Devemos mudar porque a forma atual deixou de fazer sentido para nós mesmo e não por uma razão externa.
“Ele tinha todas as minhas senhas, e se eu pedisse por privacidade, falava que eu então deveria estar escondendo algo” – H. R.
Doutora Bia Sant’Anna: Todos nós temos o direito à nossa privacidade. E, mesmo em uma relação de amor e de confiança, nem tudo é compartilhado. Isso não tem nada a ver com esconder algo. Exigir senhas muito provavelmente é uma forma de controle excessivo.
“Quis cortar o cabelo, e ele disse que não combinaria comigo” – B. M.
Doutor Alexandre Bez: A conduta invasiva, nunca é saudável. Uma democrática conversa é sempre uma boa solução.
“Eu não devia dar minha opinião sobre certas coisas, porque segundo ele, era burra” – B. M.
Doutora Bia Sant’Anna: Este é um comportamento de crítica e desmoralização. Com o passar do tempo, a pessoa passa a acreditar realmente que ela é burra. Inconscientemente, uma mensagem muito forte vai sendo transmitida: “você é burra, não vai conseguir ninguém além de mim”.
“Ele usava termos muito fortes na hora de me xingar em uma discussão” – G. A.
Doutora Bia Sant’Anna: Esse é um dos limites que não se deve deixar passar. Algumas coisas não devem ser admitidas e ponto. É a escalada da violência. Por exemplo: xingamentos foram usados e perdoados. Então numa próxima vez, não será visto como algo tão grave assim.
“Eu não podia sair sem ele, caso contrário, ele agia de maneira estranha ou me maltratava sem filtro” – A. R.
Doutora Bia Sant’Anna: O que muitas vezes ocorre é uma escalada do comportamento agressivo. Muitas vezes ele pode começar com uma resposta atravessada, uma maneira estranha de reagir. E aos poucos, a intensidade dos comportamentos vai aumentando. Por isso é essencial colocar um limite e não permitir que isso ocorra. Esta imposição de limite não precisa ser de forma agressiva, pode e deve ser sob a forma do diálogo. Mas precisa existir.
“Ele dizia que eu fazia o que queria, não era meu pai. Mas, ele deixava bem claro que não gostava da minha melhor amiga. Também dizia que eu podia ir para onde quisesse, mas se eu decidisse ir para a festa sem ele junto, iria criar motivo para brigarmos” – Bárbara
Doutor Alexandre Bez: Também ação relacionada ao controle, mas numa esfera mais profunda podendo também ter um prejuízo maior à mulher! Quando o cara gosta não é agressivo e nem é um ciumento patológico, não há controle, mas sim uma leve preocupação em perder a amada.
“Chegou em um ponto que eu não sentia que podia ter amigos homens ou sair sem ele, mesmo que com minhas amigas” – Bárbara
Doutor Alexandre Bez: Restrição total dos diretos da mulher em ir e vir. Indica controle e manifestações de poder absoluto.
“Ao longo do relacionamento, me distanciei das minhas amigas. Chegou em um momento em que eu só tinha a companhia dele e das amizades dele, as coisas aconteciam e eu não tinha coragem de contar para minha família. Então sabendo que estava sozinha, ele ameaçava de me deixar o tempo todo” – Bárbara
Doutora Bia Sant’Anna: Isso é exatamente o que costuma acontecer. A pessoa vai se distanciando das coisas e pessoas que gosta, até o ponto em que o parceiro e a vida dele passam a ser seu único foco. Com isso a pessoa fica extremamente enfraquecida e com muita dificuldade de romper o ciclo. Além de muitas vezes ter vergonha de pedir ajuda.
“Ele não era agressivo, mas chorava em todas as nossas discussões. Então eu pedia desculpas e tudo ficava bem” -Bárbara
Doutor Alexandre Bez: Chantagem emocional! Não deixa de se configurar como primeira relação tóxica, porque há um componente de controle também, mesmo que mais sútil e não agressivo! Entenda essa manifestação de chamar a atenção, através de uma agressividade passiva. Ele se faz de vítima e você cai.
“Ele gritava e me agrediu, mas segundo ele e sua família, eu que provocava” -Bárbara
Doutora Bia Sant’Anna: É muito comum a culpabilização da vítima, acontece uma inversão completa dos papéis. A pessoa realmente perde os parâmetros e passa a acreditar que a culpa é dela. O que a faz ficar ainda mais enredada na trama do relacionamento tóxico.
“Meus planos que não o incluíam, incomodavam” – V. B.
Doutora Bia Sant’Anna: Sinal de alerta. Porque somos indivíduos, e como tal temos necessariamente desejos e necessidades que são únicos e que podem ou não ser compartilhados com o companheiro. Por isso, manter a individualidade é essencial dentro de qualquer relacionamento.
“Eu não queria ter uma relação sexual em um momento em que ele queria. Então ele insistia e eu cedia mesmo sem querer, porque ele tinha que gozar, e eu nunca conseguia fazer o mesmo” – Bárbara
Doutora Bia Sant’Anna: Avançar os próprios limites e se submeter a situações desprazerosas e/ou não priorizar-se é uma das piores atitudes que se pode ter numa relação. Isso pode ser facilmente confundido com uma negociação necessária. É claro que numa relação não se pode fazer sempre o que se quer, da forma que se quer. É preciso ceder, negociar, conciliar. Mas isso é completamente diferente de abrir mão do próprio bem estar, priorizando majoritariamente o bem estar do outro. É um exemplo claro de exercício de poder sobre uma outra pessoa.