texto por Kleber Marinho (@klebermmarinho)
ilustrações por Nicole Cardoso (@_niccardoso)
Era uma manhã qualquer de um dia comum na vida de um adolescente que tinha a liberdade como meta de vida, mesmo que isso significasse apenas a sensação da brisa suave do vento lambendo o rosto, cadenciada pelo ritmo da velocidade de pedaladas, pelas ruas, sem rumo definido, driblando carros, cruzando o sinal fechado que, tal como o voo de Ícaro mergulhado em um ego inflado, busca o prazer de viver no desafio. Naquele dia, em compromisso com nada, parei na frente da avícola de meu tio, equilibrei o pedal no meio fio e procurei por meu primo, na intenção de arrumar um aliado para seguir o rolê. À época, não dava conta, mas hoje tenho consciência de que aquele ambiente não me agradava, além do característico forte cheiro cujo odor persiste, todavia, na memória olfativa até os dias de hoje, ainda havia um quê de agonia fúnebre pairando no ar, pois ali era um local que provavelmente em tempo presente seria enquadrado como ambiente politicamente incorreto, já que as penosas aguardavam em silêncio o momento do sacrifício, em que seriam abatidas na hora. Tratava-se de um lugar de resistência daquele início de tempo moderno, um diferencial dos prósperos abatedouros em série, impessoal, que não mais permitiam mais a escolha dos viventes ou de o testemunho ocular que nos remetia ao ritual de caça de nossos antepassados.
Por isso, sempre hesitava na porta e, naquele dia não fora diferente. Ao entrar, chamei em alto som na fronteira entre o reino dos vivos e mortos. Logo, surge meu tio, um comerciante nato, que antes mesmo de cumprimentar, indaga se estava lá para comprar uma ave. Diante da negativa, conta que um velhinho que morava sozinho na casa vizinha havia falecido e os filhos decidiram vender a casa e estavam fazendo um bota fora de toda biblioteca, discos e afins que poderiam me interessar.
“Vá dar uma olhada que seu primo já vem. Ele saiu com sua tia, mas volta logo. Você gosta dessas coisas… acho que vai gostar, tem um monte de livros”
Era verdade, eu gostava daquelas coisas e até cultivei certos dissabores com amigos por preferir livros à bola, em alguns momentos. Lembro-me que os prediletos eram os beatnicks, sendo favoritos os mais rebeldes como Charles Bukowski e Jack Kerouack. Mas também havia descoberto os recém-lançados Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu e Feliz Ano Velho, de Marcelo R. Paiva.
Ao entrar na casa vazia, sentei no chão e fiquei olhando ao redor. Tive a atenção chamada por duas caixas de papelão fechadas das obras completas de Freud. Havia tido recente contato com o pai da psicanálise por meio de uma coleção que trazia resumos das ideias de personalidades consagradas “O Pensamento Vivo de Freud”, Einstein, entre outros.
Uma força me impeliu a comprar e barganhei até adquiri-la, com dinheiro de meu trabalho de office-boy. É, naquele tempo era permitido trabalhar a partir dos 14 anos, andar sem cinto de segurança no carro e, nem celular existia, imagina? Assim nascia uma profissão, sem que eu tivesse a mínima consciência do fato.
Muitas vezes o caminho se abre em nossa frente sem aviso prévio, de modo sorrateiro, como se fosse um sinal que não percebemos. Na verdade, ele sempre esteve lá. É nosso daimon², também conhecido por gênio, destino, vocação, alma, etc. uma ideia aventada por Platão, de seu mito de Er, no final de seu livro mais conhecido, A República. É como se nossa alma carregasse um chip interno carregado de nossa essência sempre pronto e disponível para ser acessado a todo momento, algo muito fácil em observar nas crianças que não escondem seus desejos, gostos, desgostos e tampouco hesitam diante de seu próprio ser, em construção. Porém, ao crescer, somos moldados, influenciados e até anestesiados pela família, escola, religião, mídia, imagem e, assim, acabamos por nos distanciar de nossa essência e nosso daimon fica apagadinho, esquecido ali no cantinho de nossa alma.
Por isso, é sempre tempo para mergulhar em busca daquilo que nos pertence, que não está fora, não está na rede social, no Instagram, na escolha do outro ou no reflexo do espelho de uma imagem social que não é minha e não me pertence. Está dentro de cada um de nós, na criança esquecida que ainda vive em todos, na sua imagem sem maquiagem, no seu corpo em estado do seu normal, naquilo que é genuinamente seu e ninguém deveria interferir.
Nota de rodapé:
- O psicólogo James Hillman no livro “O Código do Ser” faz uma analogia com a semente de Carvalho, mostrando que a semente já contém a árvore, isto é, no nascimento já temos nossa essência e, por assim dizer, carregamos desde sempre todo potencial de nosso desenvolvimento, transformação e do que podemos nos tornar. O nome disso é “daimon”, também conhecido por espírito, alma, gênio, destino, vocação, dom, etc.
- Mito de Ícaro: Para fugir do labirinto do Minotauro (uma besta pavorosa), o engenhoso Dédalo, pai de Ícaro, fez um par de asas de penas e cera para o jovem voar dali. Sentindo-se poderoso e destemido no seu voo pelo céu, o jovem Ícaro não deu ouvidos aos conselhos de seu pai para não voar tão alto, perto do sol e, assim teve a cera derretida, caiu no mar Egeu e morreu afogado. Essa cena ilustra o termo de ego inflado, usado na psicologia analítica, que mostra o estado de onipotência próprio da fase da adolescência e juventude que muitas vezes faz o sujeito se sentir como se fosse imortal e, desse modo, acaba correndo riscos na vida.
Psicólogo analítico.
Instagram: instagram.com/klebermmarinho/
Contato: klebermm@uol.com.br
Ilustradora e pesquisadora de literatura infantil e juvenil, maternidade e cultura pop.
Instagram: instagram.com/_niccardoso/
Contato: ilustranic@gmail.com
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