Recentemente a expressão “objetificação da mulher” começou a ser mencionada em diversos posts quando internautas brasileiros, em sua maioria mulheres, começaram a questionar o conteúdo do Instagram de Dan Bilzerian. O famoso empresário e jogador de pôquer com uma jornada ao título de milionário polêmica possui diversos cliques com modelos padrão, as quais são retratadas sempre em grande quantidade ao lado dele, em poses que podem ser consideradas desconfortáveis.
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Homens e mulheres começaram a falar sobre o assunto nas redes, mas enquanto boa parte das pessoas fazia campanha para que o influencer perdesse seguidores, alguns internautas questionaram a contribuição de Bilzerian para o que vinha sendo chamado de “objetificação” da figura feminina.
Mas afinal, o que é isso?
estereótipos: o mal da sociedade
De acordo com a psicóloga Talitha Nobre, psicanalista membro do corpo freudiano do Rio de Janeiro e coordenadora do centro de apoio à família no grupo Prontobaby, a maneira mais resumida de se explicar o conceito de estereótipos é entender que são rótulos. “Uma maneira de generalizar um determinado grupo a partir de algumas características, com objetivo de moldar padrões sociais. Essa construção, normalmente ligada à cultura e sociedade, está no senso comum, no inconsciente coletivo”.
Mas por que “rotulamos” tanto as pessoas? A Dra. Nobre também explica: “Padronizar é uma forma de obter respostas. Nós, seres humanos, temos a necessidade de padronizar aquilo que é desconhecido. Isso traz um certo conforto, de não precisar lidar com o diferente. Por isso, criamos rótulos e procuramos inconscientemente nos encaixar em algum padrão. Em uma sociedade como a nossa, sustentar a singularidade é uma missão muito difícil”.
o que Bilzerian tem a ver com isso?
A Dra. Nobre afirma ainda que os estereótipos diminuem a subjetividade do indivíduo, já que o reduzem a padrões. Entre os mais comuns relacionados às mulheres estão o da beleza padrão, bem como a objetificação diante do homem. “Esta é uma questão social que se arrasta ao longo de toda a história da sociedade, desde o modelo patriarcal, onde a mulher assumia o lugar de submissão, feita para procriar e atender as necessidades do marido. Hoje, corpos femininos são explorados na mídia para vender algum produto masculino. A mulher sempre assumindo no imaginário masculino um lugar de submissão”.
Sobre a dificuldade de muitos usuários em refletir sobre a problemática do perfil de Bilzerian, a Dra. Nobre afirma: “Ali claramente podemos ver a banalização da mulher, reduzida aos atributos físicos. Muitas mulheres hipersensualizadas simultaneamente com um homem. Essa banalização da mulher está tão naturalizada na sociedade que já estamos com olhar viciado e não paramos para questionar”.
Entretanto, não são apenas perfis de redes sociais que se mostram nocivos para o significado que é ser mulher. “A construção do feminino é feito de maneira inconsciente desde o nascimento da mulher. Existe, ainda, uma influência do modelo patriarcal, da repressão da mulher e da submissão ao homem. Durante a adolescência, por exemplo, as produções de entretenimento assumem um papel fundamental porque essa é uma fase de construção identitária, onde os adolescentes são fortemente influenciáveis. Uma fase propícia para a adoção de novos comportamentos e atitudes. Logo, o que está sendo consumido, tem um valor na construção dessa adolescente e da sua feminilidade”.
a figura feminina no entretenimento
Você já ouviu falar no “Teste de Bechdel”? O jogo foi inspirado na tirinha publicada em 1985 com o título “Dykes To Watch Out For”, da cartunista Alison Bechdel. Assim como na história, é proposto um exercício, basta pensar em um filme que obedeça à três requisitos: 1) ter duas mulheres; 2) que conversem entre si; 3) sobre algo que não seja um homem.
Pode parecer algo simples, mas os critérios de seleção mostram como diversos produções da indústria resumem a figura feminina à conquista ou disputa de um interesse amoroso, mas, quando o protagonismo é masculino as opções se tornam mais amplas.
Faça o teste você também, mas dessa vez com as produções adolescentes populares no entretenimento. Mesmo que opções empoderadas venham à sua mente, uma realidade ainda mais dura ganha espaço: principalmente no conteúdo teen, ainda que um filme ou série passe pelo teste de Bechdel, os estereótipos ainda estão ali na maioria das vezes.
Afinal, a Mulher-Maravilha só venceu o mal por meio do amor de Steve Trevor, e a poderosa Capitã Marvel é uma mulher que representa diversos padrões estéticos, mesmo que não tenha um interesse romântico. Difícil ser girl power, não é mesmo?
A todateen conversou com a cineasta Day Rodrigues, que também é pesquisadora, escritora, educadora e produtora cultural, responsável pelo premiado episódio “Racismo e resistência” da série “Quebrando o Tabu” para o canal GNT, bem como o curta-metragem “Mulheres Negras – Projetos de Mundo” , o qual possui em seu elenco nomes como ninguém menos que Djamila Ribeiro.
Rodrigues explica com mais detalhes sobre os estereótipos no entretenimento adolescente. “As personagens são sempre muito superficiais e chapadas: a menina nerd; a que representa o padrão de beleza – a patricinha -; ou ainda uma que seja fora do padrão simplesmente porque usa aparelho no dente ou porque é gorda. Pensando também nos meninos, normalmente são os valentões ou alguém muito inteligente. Assim como acontece no conteúdo adulto, a gente respinga a superficialidade nos adolescentes com esses ‘tipos’ de personagem”.
A cineasta frisa a falha nessas produções em incluir representatividade: “Geralmente nas produções para adolescentes há apenas um único personagem negro na sala, em uma tentativa de que não se apague as pessoas negras, mas mais uma vez, reproduzindo uma generalização do estereótipo do que é ser um jovem negro”.
O questionamento da representação das mulheres negras é um exercício necessário, já que para este grupo o estereótipo da objetificação feminina se torna ainda mais frequente. “Pensando em mulheres negras, o estereótipo mais comum é a objetificação, sendo representadas sempre pelo corpo, como se elas tivessem que ser boas de cama, no samba, sem profundidade para serem grandes intelectuais, cineastas ou presidentes de uma empresa”.
Outro grupo feminino com estereótipo nocivo é o das mulheres amarelas. “Há uma construção também da mulher asiática, como a gueixa, a boneca sexualizada e subordinada ao homem. A fetichização da mulher amarela como objeto de desejo”, pontua a Dra. Nobre.
Segundo Day Rodrigues, os estereótipos são um obstáculo prejudicial à luta feminina por liberdade. “A gente acaba não combatendo a violência contra as mulheres”, conta a cineasta.“A partir do momento que estes personagens não possuem uma subjetividade profunda, não tem sua intelectualidade reforçada, pelo contrário, são tratadas como se fossem objetos sexuais ou para servir uma figura masculina, não podendo exercitar sua liberdade, isso é negativo; pois, são imaginários neocoloniais, que refletem diretamente a sociedade como lugar de quem compactua com a opressão secular existente, basta olharmos as estatísticas dos mapas das violências”.
“Se a gente tem uma sociedade que não consegue se ver para além dos estereótipos, naturalizamos uma série de violências. Como se as mulheres não pudessem exercitar um tom crítico, seja em relação ao machismo que vem de forma simbólica, seja pelos abusos sexuais, estupros, opressão e diminuição da sua capacidade de fazer escolhas e construir seu próprio caminho, pessoal, profissional ou familiar. É como se ela estivesse sempre atrelada aos valores dos outros, falta independência – política inclusive – para ter o poder de fazer suas escolhas”, completa.
como mudar?
“Não vejo outro caminho senão a educação para desconstruir esse cenário. É difícil porque muitas vezes as mensagens são subliminares”, responde a Dra. Nobre. “Políticas públicas e engajamento social, como a lei Maria da Penha, também tem sido pilares fundamentais para uma mudança na sociedade. Mas essa mudança pode também ser feita a partir de cada um de nós, de espaços como esse, provocando reflexão. É um longo, porém importante caminho”.
Em relação ao entretenimento, Rodrigues reforça a necessidade de se construir equipes ricas em pluralidade. “É importante que haja uma equipe diversa, com a presença de pelo menos metade de pessoas negras, de pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+, de lugares distintos, não só do centro da capital, mas também do nordeste, norte, sul. Uma equipe nestes moldes permite que o conteúdo audiovisual tenha uma pluralidade do que é a sociedade brasileira, não fique preso só em um lugar criado pelos homens brancos, ricos e cis. Se uma equipe for composta por diferentes grupos sociais, o roteiro é construído sob outras perspectivas”.
“Também penso que é importante que essas equipes passem por processos de formação, para entender mesmo o que são esses discursos racistas, machistas, misóginos e LGBTQIA+ fóbicos, possibilitando que a gente construa narrativas diversas”, finaliza.
Essa realidade plural não é algo tão distante! Viviane Ferreira, Flávia Cavalcanti, Juliana Vicente, Glenda Nicácio, Renata Martins, Joyce Prado e Grace Passô são algumas das cineastas recomendadas pela diretora. E não deixe de assistir o curta “Mulheres Negras: Projetos De Mundo”, produção de Day Rodrigues disponível online na Spcine Play.