Recentemente noticiamos por aqui que Demi Lovato se identifica como uma pessoa não-binária e, consequentemente, com pronomes neutros. No entanto, pela não-binariedade ainda ser um termo pouco difundido e ainda enfrentar muitos preconceitos, a afirmação de Demi gerou confusão pela internet, além de muita desinformação sobre o assunto.
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Primeiro de tudo – e para continuar acompanhando a matéria da melhor forma possível – é necessário entender que, enquanto alguns indivíduos não-binários optam por um pronome específico (“ele” ou “ela”) para nos referirmos, outros preferem os neutros, que é o caso de “elu/delu”, que substitui os marcadores de gênero (“a” e “o”) por “u”. Demi é um exemplo de quem prefere tais terminações.
Para entender melhor sobre o assunto e enxergar que o gênero vai muito além de Demi Lovato, a todateen conversou Bryanna Nasck e Nick Nagari, dois produtores de conteúdo não-binários que falam muito sobre sexualidade na internet.
Confira!
entendendo o termo não-binário de uma vez por todas
Se você ainda está meio perdido quanto a esse termo, precisamos começar explicando alguns conceitos:
Uma pessoa que se identifica como “cisgênero” é provavelmente algo mais do seu conhecimento. É basicamente o indivíduo que se apresenta e se identifica com o seu gênero atribuído ao nascer. Se você foi considerada mulher quando veio ao mundo e continuou se identificando como tal, é uma mulher cis, por exemplo.
Agora, pessoas transgêneras, por exemplo, não se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer. E, dentro desse grupo – mas não somente nele – podemos indivíduos que simplesmente não se identificam com nenhum dos gêneros impostos, nem feminino, nem masculino.
“Não-binário é um termo guarda-chuva, que abarca tudo o que foge de ser homem e mulher. Uma pessoa que se identifica como tal, não está dentro desses gêneros padronizados na sociedade“, explica Nick.
E onde eles se encaixam no movimento LGBTQIA+? Pessoas não-binárias ficam representadas no “T”, por ser considerada uma identidade trans. É importante ressaltar que se você ainda não sabe, junho é considerado o mês do orgulho, momento mais que importante de falar sobre a luta de uma comunidade que ainda enfrenta o preconceito. E isso com certeza abrange a não-binariedade.
descoberta
Bryanna Nasck identifica-se com os pronomes “ela/dela”. É uma pessoa trans, youtuber, criadora de conteúdo e uma gamer nata. Ela conta como foi o processo de se descobrir e de se aceitar do jeito que é.
“Essa descoberta foi muito revolucionária para mim, porque no início da minha adolescência eu não tinha muitas informações sobre o assunto. O que chegava até mim eram mulheres trans que eram muito estereotipadas negativamente, então eu recebi um constante reforço negativo das pessoas ao meu redor e eu eu não conseguia ter conexão com nenhum gênero. Eu sabia que eu gostava de homens também, mas eu percebi que o incômodo era muito mais profundo do que apenas o meu desejo, como se relacionar com as pessoas”, começa.
“Foi conversando com uma colega minha, que ela virou pra mim e falou, Bryanna você é gender queer e eu nunca tinha ouvido falar. Eu lembro que na época que eu pesquisei, não tinha resultado nenhum em português sobre o assunto então comecei a tocar informações de fora. E quando eu comecei a ver o depoimento de que eram pessoas que se identificam fora do que a gente entende por homem e mulher e buscam formas diferentes de contemplar essa existência eu fiquei “Meu pai amado, é isso”, completou.
Nick Nagari também é trans e identifica-se com os pronomes “ele/dele”. É produtor de conteúdo e também escritor do livro “Cinco mil explicações”, sobre jovens bissexuais. Ele conta que sua descoberta foi tardia e que teve muita influência também do racismo:
“Se você perguntasse pra mim um ano atrás eu ia falar que minha descoberta foi do nada, um dia acordei e pensei ‘e se eu usasse o pronome masculino’, mas hoje, depois de me entender melhor, conhecer pessoas trans, principalmente negras, fazer terapia, eu vejo que não foi tão do nada assim. Gênero é uma coisa que não é tão concreta, mas muitas vezes você não acredita que existam várias peculiaridades“, conta.
Em um meio sempre majoritariamente ocupado por pessoas brancas, sua descoberta também foi marcada por isso. “Eu cresci não sabendo que pessoas trans existiam. Minha experiência em relação ao gênero sempre foi diferente da pessoas com quem convivi. Eu vivi muito com meninas brancas, a gente experenciava gênero de uma forma diferente. A forma como elas eram tratadas era muito diferente de mim”, começa.
“Hoje eu vejo que era por ser uma pessoa negra, então a minha vida toda eu não tive essa vivência de conhecer pessoas trans, estereótipos de menina nem me eram dados, porque eu sou uma pessoa negra. Hoje eu vejo que não foi do nada, na infância eu sentia que só por eu ser diferente, eu era errado. Mas quando eu comecei a entender o que era o racismo foi que eu comecei a me sentir confortável pra perceber o meu gênero. Foi uma coisa que foi acontecendo”, complementa.
apagamento e desinformação
“A gente só consegue falar sobre aquilo que a gente consegue enxergar, né? O que não faz parte do nosso acesso, o que não faz parte da nossa realidade, a gente deixa no senso comum, no imaginativo. E é aí que a gente tem tantos estereótipos negativos sobre as nossas vivências. Mesmo quando falamos em pessoas trans, quantas fazem parte do seu convívio? Será que você sabe o que é de bom senso e o que não é de bom senso falar? Porque a partir do momento que a gente não convive com uma pessoa, aquela, aquele ser se torna um ser magico“, diz Bryanna.
Você provavelmente não convive/conhece muitas pessoas trans e não-binárias. Isso porque, muitas vezes o apagamento em relação a outros tipos de gênero, que não o cis, faz com que nem nós mesmos saibamos quem somos. Bryanna explica que isso não significa que não existam mais pessoas assim, desde os primórdios da sociedade. Muito pelo contrário.
“A não-binariedade sempre esteve presente na humanidade, só que a narrativa de um terceiro gênero não fazia sentido para uma sociedade binária, cristã, centrada, que via o homem e a mulher como criadores, além de colocar o homem com muita potência de poder. Então, ter um terceiro gênero dentro dessa narrativa era tipo um grande NÃO. Por isso a nossa cultura foi destruída e pessoas foram literalmente aniquiladas para que esse tipo de existência fosse o máximo visto como errôneo e punitivo”, afirma a influencer.
É importante ressaltar também que roupas, linguajar, voz, estilo e comportamento — características que são constantemente associadas ao universo feminino ou masculino – são apenas expressões de estereótipos do que se entende por homem e mulher. Nick e Bryanna dizem que todo mundo é plenamente livre para escolher se portar da forma que bem entender e que não há regra para o comportamento de pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros.
“A gente é ensinado a pensar apenas nessas duas possibilidades. Para a pessoa entender minha existência, ela automaticamente já acha que eu sou uma mistura de coisas, que eu me comporto misturando os comportamentos, as roupas, mas elas não conseguem imaginar algo além daquilo. Estamos tentando construir nossa existência, tentando fugir desses dois extremos. Eu quero ser livre nessas duas caixinhas impostas. Existem pessoas completamente diferentes entre si e é importante que as pessoas saibam disso Nem todo mundo vai fazer as mesmas coisas”, ressalta Nick.
linguagem neutra
É importante frisar que assim como qualquer um, pessoas não-binárias não são todas iguais e, portanto, não há uma regra de como devem ser chamadas. No entanto, há a proposta de uma terceira forma que vai além do “A” para o gênero feminino e do “O” para o masculino. Por exemplo, essas terminações podem ser trocados por “e”, como em “amigue”, “todes”, ou “u”, no caso de “elus”.
Mas, assim como Bryanna e Nick, hás pessoas que mantém pronomes masculinos ou femininos.
E como saber como essas pessoas querem ser chamadas? Nick traz dicas fáceis para descobrir isso. Primeiro de tudo, ele diz que primeiro você pode ir até as redes sociais da pessoa e ver através das publicações como se refere a ela mesma. Se não encontrar dessa forma, pode olhar na bio do Instagram, geralmente pessoas não-binárias deixam explícito por lá como devem ser chamadas.
E, por último, se não encontrar essas informações, não há mal nenhum em ser direto e perguntar. Nick explica que as pessoas não-binárias não se sentem ofendides e que, no fim, acaba sendo uma pergunta que pode evitar muito transtorno para aquela pessoa.
“É entender que as pessoas usam os pronomes que elas querem. Você não tem direito de chamar as pessoas errado só porque acha difícil. Mas é questão de ver como alguém se refere a ele mesmo, se está na bio do insta, se está em alguma legenda. E se não estiver em nenhum lugar, pergunta mesmo e ai você respeita, não é uma pergunta ofensiva. Acaba sendo uma micro violência você ouvir o outro te chamar errado o tempo inteiro”.Nick Nagari
Importante: muitas pessoas acreditam que as substituições das vogais referidas ao masculino e feminino devem ser feitas por “x” ou”@”, o que não é correto e explicado há mais de seis anos. Como Nick e Bryanna explicam, os dois podem dificultar o acesso à pessoas com deficiências visuais, já que o leitor de tela que usam não reconhece tais símbolos.
Resumão!
- Quando a palavra termina em “a” e “o”, substitua por “e”, substitua por “e”. Exemplo: lindo(a) – linde.
- Quando a palavra termina em “go” e “ga”, substitua por “gue”. Exemplo: amigo (a) – amigue.
- Quando a palavra termina em “ão” e “ã”, substitua por “ane”. Exemplo: irmão (ã) – irmane.
- Para os artigos “a” e “o”, opte por “ê” no singular e “es”, no plural.
- Você também pode optar por utilizar palavras gerais, que não tem demarcação de gênero, como “galera” e “incrível”.
Saiba mais:
Bryanna e Nick não deixam de enfatizar os julgamentos existentes sobre a linguagem neutra. Muita gente ainda acredita que usar os pronomes sem gênero é tarefa difícil e quase impossível de ser incorporado no dia a dia. No entanto, tanto Nasck, quanto Nagari, lembram que a língua é viva, está sempre passando por modificações e que é só questão de se acostumar e se esforçar para ser mais inclusivo.
“Eu acho que é complexo. Quando você pega, assim, coisas novas, a cabeça dá uma bagunçada. Tudo que é novo é difícil, mas vai aprendendo uma coisinha por vez, tirando as dúvidas e, naturalmente, você vai ver que não é tão difícil assim como imaginou. Tudo que é novo parece complicado, mas se a gente dá oportunidade a gente se desenvolve“, explica Bryanna.
sobre Demi Lovato e referências
Demi Lovato, uma personalidade de influência mundial, se assumir como não-binárie é um feito e tanto em questões de referência. Nick e Bryanna também falaram mais sobre a tremenda importância de uma pessoa com o espaço de fala que Demi tem, trazer esse assunto à tona.
“Quando uma pessoa famosa se assume dessa forma, que eu acredito que seja muito difícil também porque todo mundo já conhece a carreira delu de uma forma, é de uma coragem absurda que mostra a possibilidade para outras pessoas que estão se descobrindo”, diz Nick, que passou a vida toda achando que não podia ser do jeito que era.
“Quanto mais se fala sobre o assunto, mais dá oportunidade da gente enquanto sociedade discutir sobre esses tópicos importantes. Claro que vai ter muitas repercussões ruins, como eu vi muitos comentários horríveis. Mas além desses comentários negativos, eu consigo imaginar muitas pessoas se descobrindo e se questionando. Aliás, você pode questionar o seu gênero sem necessariamente definir se você é alguma coisa ou não, eu acho que isso é muito bem-vindo”, explica Bryanna.
Ela também evoca a extrema importância de Demi mostrar como pessoas não-binárias podem ser muito bem sucedidas. “Uma das piores coisas que eu tive na minha adolescência, foi crescer em um momento onde eu olhava pra televisão, olhava pro mundo e eu não via ninguém que me traduzia. E por muito tempo acreditei que não tinha um futuro”.
não tenha medo de ser quem é!
Demi Lovato é só um exemplo famoso da existência da não-binariedade. Sam Smith, Bárbara Paz, Sara Ramirez (Greys Anatomy), Brigette Lundy-Paine (Atypical) são algumas das personalidades que já afirmaram não se identificar com os gêneros impostos. Fora do ambiente das celebs, isso também se manifesta e, pessoas “comuns”, como Nick e Bryanna conquistam cada vez mais seu espaço no mundo.
“No momento em que eu percebi que eu tinha valor na minha individualidade, que eu tinha valor na minha trajetória, assim como qualquer outra pessoa, eu vi a oportunidade de compartilhar esse pensamento com as outras pessoas. E é fazendo um vídeo de maquiagem onde eu discuto sobre a imposição de estereótipos na nossa sociedade, sobre autoestima, sobre saúde mental, eu sempre tento fazer vídeos que englobam vários assuntos do tipo”, comenta Bryanna.
“Hoje em dia, eu estou fazendo muitas lives de games na minha página do Facebook e eu consegui fazer algo que é muito único: estar no meio altamente dominado por homens cisgêneros. E, ainda assim, construir um espaço ao redor de mim e conseguir abordar esses assuntos em um ambiente que as pessoas não queriam ouvir. Às vezes eu converso com crianças. Às vezes eu estou conversando com pais que chegaram na minha live e não sabem o que é uma pessoa trans, não sabem o que é uma pessoa não-binária. E aí, a gente vai conversando e jogando ao mesmo tempo e quando você vê expandiu a cabeça dele, para assuntos que normalmente eles não iriam ver, né?”, complementa.
Nick também compartilhou mais do seu papel na internet: “A gente tem que tomar esses espaços porque se a gente não estiver lá, ninguém vai estar. O meu lugar, principalmente dentro do Instagram, que é uma plataforma que reforça muito padrões, é de ocupar esse espaço e dizer que existem pessoas que nem eu, além de empoderar essas pessoas. Todos os dias eu recebo mensagens falando que por causa de mim alguém se aceitou e se entendeu melhor”.
recado para quem lê a todateen <3
Tanto Bryanna, quanto Nick deixaram mensagens inspiradoras para quem lê a todateen. Olha só:
Eu queria primeiro dizer que vocês são o futuro. Durante a adolescência algo que eu tive muito presente na minha vida ao enfrentar desafios com depressão e ansiedade, era achar que eu não tinha valor e nem capacidade nenhuma. Lembro que a última vez que eu voltei do hospital, na tentativa de simplesmente acabar com tudo, eu falei que ia dar uma chance de tentar fazer as coisas darem certo e eu fiz tudo o que estava ao meu alcance, dando um passinho de cada vez. Era postar um vídeo quando eu conseguia, era estudar, fazer um curso, juntar dinheiro. Hoje, com 27 anos, eu ultrapassei todos os sonhos que eu tive a minha infância e adolescência inteira. Se permita mais do que nunca errar e aprender com os seus erros. A vida é uma constante de desafios que a gente vai ultrapassando e cada experiência que a gente ganha, contribui pra nos tornarmos alguém melhor. Se questione e se descubra.Bryanna Nasck
Tudo o que você sente sempre vai ter um espaço no mundo, existem pessoas como vocês. Se você está pensando que é um alien, não é, existem pessoas que vão te ajudar, conversar com você. E se você não faz parte de nenhum desses grupos, busque saber mais sobre o assunto, a gente é muito melhor quando entende a pluralidade das pessoas e para de achar que o mundo gira ao nosso redor. Procure ser uma pessoa boa com todo mundo, saber quais são as pautas que afetam outras pessoas. Pensar em um futuro livre pra todo mundo, porque ele tem que ser de todes. Nick Nagari
acompanhe pessoas não-binárias!
Por último, mas não menos importante, Nick ainda dá dicas de pessoas não-binárias que podemos seguir nas redes sociais. Elus estão ocupando todos os espaços e nada melhor do que demonstrar apoio através de sua arte, não é mesmo? Olha só:
Maria Freitas: autora de “Cartas para Luísa” e da coleção “Clichês em rosa, roxo e azul”.
Koda Gabriel: também escritor focado em romances e ficções especulativas.
Jupi77er: rapper e criador de conteúdo.
documentário “Nem menino, nem menina”: disponível no Globoplay.