Algumas das decisões que tomamos ao longo da vida podem ter mais de um significado, mas nem sempre pensamos claramente antes de tomá-las. Na minha experiência, por exemplo, alisar o cabelo tinha um significado em 2012. Nessa época, era uma escolha tomada por alguém que estava cansada daquele cabelo armado e sem definição, ou como já me apelidaram, a juba do Leãozinho, da música de Caetano Veloso.
Não acho justo colocar a progressiva como a vilã dessa história, até porque alisar o cabelo sempre foi uma escolha minha. E acredito que cada um deve fazer o que for melhor para se sentir bem consigo mesmo. Mas a Isabela do passado não tinha essa visão, mas só o desejo de se encaixar de alguma forma.
Olhando para essa história com novas lentes, isolada dentro de casa em 2020, resolvi dar uma chance para tal da transição capilar. E foi nesse movimento que encontrei muitas histórias repletas de novos significados lindos por trás da escolha de assumir o cabelo natural. Narrativas estas como Amanda Verniano decidiu explorar em um livro.
Crespas & Cacheadas: Histórias de Mulheres que Passaram pela Transição Capilar nasceu a partir de uma ideia para o TCC, mas alcançou muito mais do que o ambiente universitário. No livro, a jornalista de 23 anos traz a visão sincera de mulheres que passaram por esse processo. Sem esconder as incertezas ou dificuldades da transição, o resultado é uma fonte de inspiração para quem também está vivendo o mesmo.
Por isso, a todateen conversou com Amanda para entender mais sobre sua experiência de criar o livro. No bate-papo, ela compartilhou conosco sua própria vivência, destacou a importância de falarmos sobre a relação entre racismo e cabelo crespo e cacheado e muito mais.
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Confira:
todateen: No livro você relata que está passando pela transição capilar e explica um pouco da sua trajetória nesse processo. Mas para as pessoas te conhecerem um pouco melhor, você poderia nos contar um pouco da sua história com seus fios?
Amanda: Eu nasci em uma família em que todo mundo possui cabelo liso, ou no máximo ondulado, então desde criança eu convivi com pessoas que tinham um cabelo muito diferente do meu. Na escola era a mesma coisa, todo mundo ao meu redor tinha cabelo liso, e na TV, nem se fala! Então eu cresci sem referência nenhuma de uma pessoa cacheada, e vendo minha irmã e minha mãe tendo uma facilidade enorme de cuidar do cabelo liso delas, enquanto eu demorava muito tempo todos os dias para arrumar meus cachos. Essa falta de referências era bem pesada para mim, então desde muito nova eu já queria alisar o cabelo. Inclusive, minha mãe fez permanente no cabelo dela por um período para eu me sentir melhor sobre ser “a diferente da família”, e eu fiquei muito feliz. Durante a infância tive alguns episódios de pessoas falando mal do meu cabelo, nunca me esqueço de um menino que me chamou de cabelo de assolan uma vez. Mas foi na pré-adolescência que a rejeição com meus fios veio com força. Todas as meninas na escola usavam o cabelo solto e tinham cabelo liso, e eu só usava rabo de cavalo. Eu não sabia arrumar meu cabelo, eu não conseguia deixar ele solto de uma maneira que eu gostasse e eu não me sentia aceita com ele. Hoje eu vejo que era uma pressão estética enorme que eu vivia naquela época, de todos os lados. Eu odiava meu cabelo, mas era porque eu realmente não gostava ou porque me diziam e me mostravam que o cabelo liso era melhor? Hoje eu vejo que é a segunda opção. Fui ensinada socialmente a não gostar do meu cabelo. Por muitos anos eu insisti para a minha mãe deixar eu alisar meus fios, mas como ela era muito preocupada com a química, só permitiu que eu fizesse um alisamento com 15 anos. Foi quando eu comecei a fazer escova progressiva e não parei por 5 anos. Eu fiquei praticamente viciada no alisamento, minha raiz crescia um dedo e eu já fazia um alisamento de novo. Durante esses 5 anos, fiz progressiva 23 vezes. Acabei com a saúde do meu cabelo, mas confesso que me amava de cabelo liso. Realmente me fez muito bem ter cabelo liso nesse período. Na minha última escova progressiva, meu couro cabeludo ficou extremamente sensível (como sempre ficava), e ao coçar minha cabeça, eu acabei abrindo um corte nele. Aquilo me chocou muito porque eu percebi a agressão que era fazer o alisamento. Foi quando eu comecei a questionar os motivos que me faziam alisar os fios, e entrei em transição capilar.
O que te levou, de fato, a escrever um livro sobre histórias de mulheres na transição capilar?
Tudo começou no meu último ano da faculdade de Jornalismo, quando eu precisava fazer meu TCC. Eu já sabia que eu gostaria de escrever um livro, mas ainda estava sem ideias sobre o tema. Um dia, lavando meu cabelo, eu tive o insight de escrever sobre transição capilar. Eu estava passando pela transição capilar no momento, então estava vivendo uma fase de muita superação e muito amor próprio… Minha vontade de falar sobre transição capilar para o mundo era enorme, então eu uni o útil ao agradável. Eu estudei muito sobre o tema para começar a escrever, arquitetei bem todos os temas que eu queria abordar no livro, e garanti que ele tratasse das questões sociais e emocionais da transição capilar. Depois de ter estudado a fundo as raízes da transição capilar, como o racismo e os padrões estéticos do passado, eu comecei a procurar mulheres para entrevistar. Postei sobre o meu trabalho em alguns grupos do facebook, e muuuuitas mulheres se interessaram em falar comigo! Foi vendo o interesse dessas mulheres que eu percebi o quanto aquele trabalho era especial! De todas as interessadas, eu entrevistei 21 mulheres, e coloquei no livro o relato de 16 delas. Depois da entrevista veio a parte mais gostosa, que foi escrever a história delas com as minhas palavras. E assim, o Crespas & Cacheadas nasceu!
Como foi a experiência de escrever um livro sobre histórias de transição capilar, ainda estando na transição? Quais foram seus sentimentos nesse processo?
Quando eu comecei a escrever o livro, eu não imaginei que fosse me emocionar tanto durante o processo. Eu estava em transição capilar, e claro, estava enfrentando dificuldades durante o processo, além de um embate de sentimentos dentro de mim… Era um misto de amor-próprio com “não aguento mais a transição”… Ouvir relatos de histórias parecidas com a minha foi muito bom. Eu me senti muito acolhida, e eu me identificava demais com algumas situações que as minhas entrevistadas já viveram. E sério, é muito bom ouvir uma história parecida com a sua quando você está enfrentando a transição. Eu não pensava em desistir da minha transição capilar, mas mergulhei muito mais de cabeça nela depois de conversar com tantas mulheres que passaram por ela. Foi um divisor de águas na minha transição. Além dos sentimentos bons, também tive momentos delicados ao ouvir os relatos… Muitos relatos falaram sobre situações muito cruéis que as entrevistadas viveram com seus cabelos e com pessoas ao seu redor. Foi agoniante ver como algumas crespas e cacheadas sofreram tanto com seus cabelos. É difícil ouvir relatos com situações ruins, e eu pensava que, se eu que nem passei por metade do que elas passaram, sofri para caramba, imagina elas… A parte boa é que, mesmo com os momentos ruins, todas as histórias tem um final muito feliz.
No livro você menciona que é uma mulher branca e expõe que é impossível falar de transição capilar sem falar sobre racismo. Assim, você trouxe vozes para expor esse preconceito por meio de diferentes experiências. E recentemente, também nos deparamos em rede nacional, no BBB21, com um caso de racismo relacionado ao cabelo de participantes negros. Qual você acha que é a importância de continuarmos expondo o racismo existente quando falamos sobre cabelos crespos e cacheados?
Quando eu decidi escrever sobre a transição capilar, eu sabia que teria que explorar as raízes desse assunto a fundo, que são principalmente o racismo e os padrões de beleza impostos desde os tempos antigos. Nesse momento eu me vi em um dilema muito grande, como eu falaria de racismo sendo branca? Para solucionar isso, eu trouxe ao Crespas & Cacheadas falas de outros livros, que foram escritos por pessoas que realmente tem propriedade para falar sobre o assunto. Foi uma forma muito legal de explorar o tema, porque eu consegui expor a relação de transição capilar e racismo, e também deixei o livro muito mais rico em conteúdo, já que utilizei bibliografias diferentes para escrever essa parte. Quando aconteceu tudo o que aconteceu com o João dentro do BBB, eu fiquei abismada com a quantidade de pessoas nas minhas redes sociais que não entenderam que ele passou por um episódio de racismo, e não conseguiram relacionar um comentário capilar com racismo. Minha vontade era mandar o Crespas & Cacheadas para todo mundo que achou que o João estava de mimimi. A parte boa desse episódio triste que ocorreu com o João, é que muita gente aprendeu com ele. A relação entre cabelo crespo e racismo ficou escancarada em rede nacional, e com certeza, muita gente que não via problemas em falas como as do Rodolffo, se conscientizou. A desinformação de diversas pessoas, tanto dentro quanto fora do BBB, mostra que esse tema tão delicado ainda precisa ser discutido. Como ser humano, eu acho completamente importante as pessoas entenderem todas as formas de racismo que existem, e se conscientizarem sobre as mesmas. E como mulher cacheada, eu defendo ainda mais nós falarmos da relação entre racismo e cabelo crespo e cacheado. O que eu mais friso no meu livro é que nosso cabelo não é só um cabelo. Tem uma história enorme por trás que envolve milhões de pessoas escravizadas e diminuídas. E as pessoas precisam entender que essa relação existe! Não é só um cabelo. Não é só uma transição capilar. Não são só 10, 20, 30 anos de química capilar que não fazemos mais. É um padrão estético social que foi construído em cima de uma história muito triste. O fato de pessoas acharem a transição capilar uma besteira, ou não entenderem por que não é legal comparar um cabelo crespo com o cabelo de um homem das cavernas mostra o quanto ainda precisamos falar disso.
Um ponto em comum entre algumas das histórias que você trouxe é o desconhecimento da pessoa em transição em relação a como o próprio cabelo era, antes do alisamento. Sabemos que os padrões de beleza e a pressão estética continuam muito fortes, principalmente entre nós, mulheres. Mas levando em conta que esse processo tem sido cada vez mais exposto nas redes sociais, como você vê a transição capilar como uma forma de quebrar esses padrões?
Ao meu ver, a transição capilar chegou para revolucionar os padrões de beleza. Já há alguns anos o movimento da transição capilar se tornou forte no Brasil, e ele tem sido cada vez mais exposto. Eu mesma participo de grupos com milhares e milhares de mulheres que estão em transição, e esses grupos só crescem. Se de um lado nós temos as pessoas buscando ter o cabelo natural de volta, do outro temos uma indústria que percebeu isso e está investindo em produtos para crespas, cacheadas, onduladas e mulheres em transição. Para mim, o investimento de grandes marcas em produtos para as encaracoladas e a publicidade dessas marcas na mídia é o que realmente colabora com a quebra dos padrões de beleza. Ter opções de produtos para enfrentar uma transição capilar é muito motivador. Outro ponto que colabora muito com a quebra dos padrões de beleza, são as influenciadoras que falam sobre transição capilar. Durante a minha transição capilar, foi muito importante para mim consumir conteúdos de pessoas que estavam em transição capilar, ou já tinham passado por ela. Pensando nas influenciadoras digitais e nos produtos para encaracoladas, a gente vê que tudo o que é exposto na mídia dá força para essa quebra de padrões de beleza. Eu tenho certeza que o movimento da transição capilar vai crescer cada dia mais, e esses apoios são fundamentais!
Depois de entrar em contato com tantas histórias inspiradoras, você poderia compartilhar com a gente alguns conselhos para quem está passando pela transição nesse momento?
Acho que o conselho mais importante sobre a transição capilar é: Não faça nada que você não tenha vontade. Algumas pessoas se veem na obrigação de passar por uma transição capilar, e de aceitar seu cabelo natural a todo custo. A transição capilar não é uma obrigação para ninguém! A sua aparência deve sempre estar do jeito que você se sente melhor, então não se culpe se você desistir da transição capilar no meio dela, ou se você tiver passado pela transição e depois voltar a alisar o cabelo. O importante é você estar feliz com sua aparência, e não tem problema nenhum mudar de ideia no meio do caminho.
Durante a minha transição capilar, eu prezei a minha auto estima acima de tudo, e funcionou super bem para mim! Eu não me sentia bonita com o cabelo com duas texturas, e passei a camuflar minha transição capilar usando chapinha e babyliss. Deu muito certo! Eu também usava secador, e com a ajuda desses equipamentos, arrumava o meu cabelo de um jeito que eu me sentisse bem e bonita. Há pessoas que são contra o uso de chapinha, babyliss, entre outros na transição, mas eu sou totalmente a favor. Para mim, não faz o mínimo sentido passar pela transição de uma forma que você não se sente bem, então meu maior conselho é: Use e abuse de utensílios de cabelo, sejam eles secadores, chapinhas, toucas ou presilhas! Principalmente se você, assim como eu, tem dificuldade em lidar com duas texturas de cabelo. O único ponto de atenção nisso tudo, é tomar cuidado para não danificar o seu novo cabelo com o uso excessivo de chapinha, por exemplo. Nada em excesso faz bem, então usem com atenção. Cuide do seu cabelo durante a transição capilar. Isso foi uma coisa que eu não fiz, e que me arrependo muito. Hidrate seus fios, teste produtos de cabelo cacheado nele, aprenda a cuidar aos poucos. É importante ter uma rotina de cuidados com o cabelo para concluir uma transição capilar saudável. Uma dica para as mulheres, que assim como eu, não querem deixar o cabelo curto, é ir cortando as pontas do cabelo aos poucos em vez de fazer o Big Chop [grande corte que tira toda a parte alisada dos fios] de uma vez. A transição demora mais, mas vale a pena para quem não quer perder o comprimento do cabelo. Paciência é uma dica clichê, né? Mas eu não podia deixar de citar, principalmente porque vejo muitas mulheres desesperadas durante a transição capilar quando o cabelo demora para ter um formato. Tenham paciência com seus fios. Anos de química não vão embora do dia para noite, e o seu cabelo com certeza vai mudar muito até o final da transição capilar. Eu sei que é um período sofrido, mas tenham paciência e aproveitem cada fase para conhecer novas formas de cuidar dos fios.
E por fim, a dica mais importante para mim é: Consuma conteúdos que te inspirem a continuar. Se você quer mesmo passar pela transição capilar, ou já está enfrentando esse momento tão delicado, acompanhe quem também está. Há milhares de influenciadoras sobre transição capilar, e não há apoio maior do que ver gente como a gente. E claro, eu não posso deixar de citar o Crespas & Cacheadas como dica também. Para quem curte ler, o livro é a força que você precisa para continuar passando pela transição capilar. Busquem livros, vídeos, influenciadoras, atrizes, referências… Se inspirem! Ter uma inspiração com certeza ajuda nessa caminhada.
Conheça alguns dos perfis que trouxeram inspiração para Amanda: