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Qual o caminho até um audiobook ficar pronto?

Qual o caminho até um audiobook ficar pronto?
Qual o caminho até um audiobook ficar pronto? (Reprodução/Rawpixel)

Pelo simples ato de virar uma página, entramos em contato com novos universos e uma diversidade infinita de sentimentos e sensações. Mas você já pensou na possibilidade de utilizar a audição para se conectar com a literatura? Os audiobooks, ou audiolivros, têm se popularizado cada vez mais no mercado literário e se consolidado como uma alternativa muito interessante para escutar aquele livro que já estava parado há muito tempo na sua estante. 

Diferente da sensação de avançar nas páginas de um livro, apenas um play no celular já é capaz de te levar a novos mundos. Porém, até um audiobook ficar pronto, existem muitas etapas por trás desse gesto digital. E são processos como esses que, inclusive, têm impulsionado um mercado em constante ascensão ao redor do mundo. 

Segundo Claudio Gandelman, CEO da Auti Books, nosso país está caminhando para este avanço: “São produzidos no Brasil 30 mil livros por ano. Então é um mercado que tem um potencial de crescimento muito grande ainda […] Nos Estados Unidos, o setor de audiobooks já emprega mais gente do que a Broadway, então tem muita gente trabalhando nesse setor. E a gente acredita que o Brasil vai em algum momento chegar próximo a isso”.

Mas como, de fato, um audiobook fica pronto? Para esclarecer os principais processos no caminho até um audiolivro nascer, a todateen conversou com alguns dos profissionais que atuam diretamente nesta área. Da narração à distribuição, descubra o que acontece nos bastidores até você conseguir dar o play e escutar um novo livro. 

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a voz por trás das histórias

Patrícia Ferrer, artista e comunicadora, trabalha em várias áreas da arte e da comunicação, mas começou a se envolver com a narração após um teste para um audiolivro e alguns trabalhos de dublagem e voice over. Ela explica que, antes mesmo de dar vida às narrativas pela voz, existe um intenso cuidado vocal. 

“Como sou uma profissional da voz, tenho uma rotina semanal de cuidados com aquecimento vocal, respiração, vocalises e leituras em voz alta. Mas quando estou gravando um audiolivro intensifico os cuidados. Evito sair para não cansar a voz, bebo mais água e procuro descansar mais”, conta. 

Contudo, a profissional aponta que, por conta dos prazos de entrega exigidos pelas editoras, não existe muito tempo disponível para preparação antes da narração. “Costumo ler o livro antes, mas nem sempre dá tempo em função dos cronogramas […] Sempre busco referências da minha própria experiência profissional para interpretar os personagens”, afirma. 

Patrícia também compartilha algumas das diferenças na hora de narrar livros de gêneros distintos: “Nos livros de ficção, geralmente existem diálogos que exigem mais interpretações e mudanças de vozes (que traduzem cada personagem). Exigem também uma versatilidade para pronunciar todos os “s” sem ficar com tom linear, quadrado. Dependendo do livro, eu narro uma “cena” de briga, daqui a pouco estou narrando outra de sexo, em seguida passa para o diálogo no qual preciso interpretar a voz de uma criança. Já nos audiolivros de não ficção, a linguagem costuma ser mais técnica, mais rebuscada, mas mesmo assim tem todo um cuidado especial com as pronúncias e com o tom que precisa ser convidativo para não cansar o ouvinte.”

Trazendo a teoria para a prática, Ferrer ainda faz questão de apontar como a rotina durante o processo de gravação do audiobook é bem trabalhosa. Ela exemplifica que o tempo da gravação para cada livro depende da linguagem abordada na obra. “É um trabalho singular que exige muita concentração, dedicação, técnica e versatilidade nas interpretações”, diz.

“Um áudio de 20 minutos, não é gravado somente em 20 minutos, esse tempo na maioria das vezes estende-se. É um processo intenso. Não é sentar, gravar e pronto. Para narrar um livro, precisamos narrar exatamente o que está descrito, com todos os “r”(s), “s” (s), mas sem ficar linear”, continua. 

Tratando do tempo de trabalho, Patrícia ressalta que “nunca é um tempo preciso e igual para livros com o mesmo número de páginas”. “Têm livros com muitas palavras em outras línguas, em que preciso pesquisar as pronúncias. Tem livro em que eu preciso cantar, aí tem o tempo de pesquisar e aprender a música. Existem diálogos com mais de dois personagens ao mesmo tempo em que eu preciso mudar as vozes sem perder o ‘calor’ da discussão descrita no diálogo”, completa. 

No entanto, ela analisa a partir de sua experiência que, para narrar um livro de 300 páginas em um prazo confortável, com todas suas nuances, demora em torno de 7 semanas. “Quando estou em processo de gravação fico com os horários trocados, pois acabo gravando na madrugada por ter menos ruídos externos. Quando começo a gravar, fico mergulhada no universo daquele determinado livro. Fico nessa rotina por algumas semanas dependendo do números de páginas”, conta. 

da gravação para os ouvidos

Ainda tendo como base um livro de 300 páginas, todas as horas gravadas passam por um processo de edição após a narração, até o material ficar com uma média de oito horas de duração. Claudio Gandelman explica que tal produto conta com uma “limpeza”, já que são editadas algumas palavras que não soaram muito claras e espaços de respiros também são encurtados, para dar uma continuidade maior à narrativa. 

“Existem vários cuidados. Por exemplo, como o microfone é muito potente, qualquer tipo de atrito de roupa, o microfone já capta isso. Como a pessoa está mexendo muito com o abdômen, eventualmente tem barulhos abdominais que o próprio microfone também pega. Então é um processo de limpeza constante deste áudio”, afirma. 

Depois destas etapas, o audiobook é enviado para plataformas dedicadas à sua distribuição, como a Auti Books. Claudio conta que foi procurado por Tomás da Veiga Pereira, um dos sócios da Sextante, para montar um modelo de audiolivros dentro da editora. Após uma análise, a empresa nasceu em parceria com outras editoras, como a Intrínseca e a Record.

A relação da Auti Books com as editoras funciona na medida que elas são as responsáveis por produzir, de fato, o audiobook: “As editoras têm o catálogo, o direito que elas compram. Como se fosse um livro comum, elas compram também o direito de áudio. E aí elas produzem e colocam na nossa plataforma de distribuição.”

Antes do audiolivro ser disponibilizado em um aplicativo para o público, Claudio pontua que a compra dele precisa ser realizada pelo site do serviço, caso contrário, “encarece o preço em 30%”. Ele ainda expõe algumas das dificuldades em manter em funcionamento um app como o da plataforma. 

“Esse é o aplicativo mais difícil que eu já fiz na minha vida, e eu já fiz alguns. Por que? Porque, na verdade, a pessoa tem que acompanhar [o audiobook] e a gente tem que disponibilizar para ela em várias plataformas ao mesmo tempo. Então precisa estar conectado o que está sendo ouvido no aplicativo e se a pessoa entrar no site, já tem que ouvir exatamente de onde ela parou.”

Outra dificuldade relacionada ao aplicativo que o CEO enfrenta é a questão de armazenamento nos celulares da população brasileira: “Muita gente não baixa o audiobook todo para ouvir, porque realmente não tem a capacidade no próprio celular. Então a gente acaba tendo que oferecer um serviço onde [o usuário] pode ouvir através de streaming […] Então tem algumas dificuldades técnicas sim, não é um aplicativo fácil de se fazer. Mas ele está funcionando bastante bem […] E eu acho que quando a gente tiver o 5G, vai ser muito mais fácil.”

desafios do mercado

Patrícia Ferrer expõe que as adversidades no mercado de audiobooks também acontecem durante o próprio processo de narração, já que, para ela, “cada livro é um novo desafio”. “Acho enriquecedor aprender palavras novas, pronúncias inusitadas. O mais desafiante para mim são os imprevistos que acontecem durante as gravações. Às vezes estou hiper concentrada, a leitura está rolando super bem, aí toca uma buzina, um cachorro late, estala o vidro da janela. Aí o que acontece? Tenho que parar e refazer aquela interpretação que já estava incrível”, completa. 

A artista e comunicadora narrou a maior série de audiolivros já gravada no Brasil, o Best Seller A Garota do Calendário, de Audrey Carlan. Ferrer passou um ano inteiro gravando os doze livros da série, no qual interpretou todos os personagens. Durante a finalização deste trabalho, ela menciona um momento engraçado envolvendo tais desafios da área. 

“Quando estava gravando uma das cenas finais, eu me emocionei de verdade. Estava lá interpretando, chorando… Nisso meu cachorro começou a latir e minha mãe bateu na porta assustada achando que eu estava passando mal. Tive que parar. Expliquei, rimos e voltei para gravar aquela parte novamente”, compartilha Patrícia. 

Já no quesito da distribuição dos audiolivros, Claudio Gandelman aponta outra característica que é vista como uma dificuldade para o mercado se consolidar no Brasil: “a falta de conhecimento das pessoas em relação ao que é o audiobook”. “Essa questão facilitava [o conhecimento sobre audiolivros] antes da pandemia, porque as pessoas passavam muito tempo no transporte público. Então agora tem muita gente em casa, passa-se menos”, comenta. 

“Mas eu acho que quando voltar a normalidade, tempos ociosos de transporte público, de direção, de ginástica, de cozinha… a pessoa vai poder efetivamente utilizar para escutar livros. Porque você não consegue andar na rua lendo livros, mas você consegue andar na rua escutando um livro […] E ainda é um mercado que acabou de nascer e as pessoas não conhecem ainda. Mas eu acho que em pouco tempo a gente vai ter uma disseminação grande”, reflete. 

remuneração

Tratando da parte da remuneração dos profissionais que atuam nesta área, Patrícia conta como esta ainda “é uma questão bem delicada, mas necessária de ser mencionada”. “O mercado de narração de audiolivro é relativamente novo no Brasil, portanto acredito que os valores foram estabelecidos sem o real conhecimento sobre o ofício singular e trabalhoso do narrador”, diz.

Ela explica que os valores variam de editora para editora: “A remuneração é distinta para narradores e atores que têm mais projeção nas mídias, ou mais experiência com a função. Mas os valores praticados em média para a maioria dos narradores estão abaixo dos valores de mercado para profissionais da área. O valor total a ser recebido depende do tamanho do livro. O cálculo é feito sobre o tempo total de áudio limpo.”

Portanto, entre as melhorias da área que Patrícia ressalta está a necessidade de “o narrador precisar ser mais valorizado pelo serviço que oferece”. “Penso que algumas coisas precisam de fato melhorar até para se manter a qualidade dos trabalhos apresentados […]  É um trabalho lindo, um mercado promissor que merece essa atenção”, acrescenta. 

“Acho importante também cada um ocupar o seu lugar dentro da estrutura da produção de audiolivro, ou seja, não cabe ao narrador editar os áudios. É importante ter um editor para editar os áudios (isso ainda é proposto para alguns narradores). Penso que alguns produtores e editores precisam conhecer de verdade o processo de narração pois percebo que muitos não têm a noção exata do trabalho que é executado, isso acaba interferindo na remuneração e nos cronogramas com prazos apertados.”

experiência única

Agora que as principais etapas deste mercado foram expostas, também é preciso destacar alguns dos benefícios que envolvem o consumo de um audiobook. “O fator que mais pode surpreender é a pessoa descobrir que é tão agradável, mas tão agradável, alguém contando uma história, porque lembra a infância. Acho que esse é o primeiro fator de surpresa, efetivamente ter alguém contando uma história para você”, diz Claudio. 

O CEO da Auti Books também faz questão de ressaltar outro ponto que torna os audiolivros tão importantes: “A acessibilidade não é aquela acessibilidade que a gente pensa normalmente pra pessoa que efetivamente é cega que pode ouvir um audiobook. A grande maioria da população brasileira não tem acesso à leitura. Então efetivamente, eu acho que é um ganho, assim, extraordinário. Eu acho que o audiobook tem a capacidade de mudar o país, eu realmente acredito nisso.”

Claudio ainda relata a emoção por trás de audiobooks narrados pelos próprios autores das obras, como Estação Carandiru, de Dráuzio Varella. Na sua opinião, este é o melhor livro narrado – e ele explica o porquê: “É uma voz que todo mundo conhece, de uma situação muito peculiar, que é a vida dele dentro do Carandiru. Ele narrando isso dá um tempero todo especial, porque é a história que ele viveu. Então esse pra mim é a melhor narração de todas.”

Ele também conta uma história como um exemplo de que os audiolivros podem ser transformadores na vida das pessoas: “Eu conheço uma diarista que teve a chance de ouvir um livro do Lázaro Ramos, narrado por ele. Ela ficou encantada com aquilo, porque ela não tem acesso a leitura, ela mal sabe ler e escrever. Mas ela teve acesso a um livro […] Olha que felicidade, que coisa mágica poder ter acesso a cultura dessa forma. É um negócio fantástico.”

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