Recentemente, diversos grupos feministas se mobilizaram para votar no site do Senado Federal contra a proposta do senador Eduardo Girão (membro do partido Podemos, eleito pelo estado do Ceará). Tratava-se do projeto de Lei Nº 5435/2020, nomeado “Estatuto da Gestante”. O projeto ficou popularmente conhecido como “bolsa estupro” e não é o primeiro que tenta modificar os atuais direitos das mulheres após serem vítimas de violência sexual. Os 271 mil votos contrários à proposta – vencendo de 22.583 favoráveis – podem ter paralisado o projeto no momento, mas é sempre importante compreender a problemática por trás, afinal, não será essa a última tentativa de formalização de um dos tópicos da agenda de costumes (termo da cobertura jornalística para pautas conservadoras).
+8 direitos que as mulheres têm no Brasil, mas nem todo mundo sabe
Atualmente, após sofrer violência sexual, as mulheres brasileiras têm direito a um atendimento imediato pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para receber amparo médico, psicológico e social, bem como procedimentos de profilaxia contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e acesso às informações sobre seus direitos legais, incluindo a interrupção da gestação, o aborto, que é permitido nesta ocasião.
+Precisamos falar sobre o aborto: uma questão de saúde essencial à liberdade feminina
O projeto do senador Girão, apesar do nome de apelo social, não complementa esses direitos, já que modifica diversos pontos já consolidados em nossa Legislação. Para compreender melhor os efeitos legais do projeto, a todateen entrevistou a Doutora Natália Veroneze (@natalia.veroneze), advogada que atua nas esferas penal, trabalhista e de família.
feto e bebê não são sinônimos na legislação
Em nossa lei, os termos “nascituro” e “bebê” são completamente diferentes, visto que o primeiro se refere a um embrião ou feto, enquanto o segundo só é utilizado após o nascimento. Essa diferença é fundamental, visto que o aborto e o homicídio são tratados de maneira completamente diferente em nossa legislação. Acontece que o projeto não traz essa diferença entre os termos, fato que pode até ser compreendido como erro técnico, mas que na prática abre margem legal para um tratamento jurídico duro com mulheres que cometeram o aborto.
Com essa falta de diferenciação entre feto e bebê, o projeto pretende garantir que o parto ocorra, colocando diversos “direitos” para a gestante, sem mencionar a opção de realizar o aborto. “O Estatuto proposto teria 12 artigos, que versam sobre o momento de concepção da vida, sobre a garantia de condições dignas de existência das crianças, sobre o atendimento da gestante no SUS, ou seja, sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos das mulheres na esfera da Saúde, sobre adoção, sobre sanções penais ao estuprador, proibição do aborto em caso de estupro, feminicídio, filiação do nascituro, direito à informação da paternidade do estuprador, e por fim, mas não menos importante, sobre o pagamento de um salário mínimo para o nascituro, até que ele complete 18 anos”, afirma a Dra. Veronezze.
Entre propostas para apoio financeiro da gestante, o Estatuto, na prática, cria uma obrigatoriedade para que vítimas de violência prossigam com a gravidez. “O Estado não pode impedir de forma arbitrária a execução do plano de vida de uma mulher com a obrigatoriedade de realizar uma gestação à qual não deu causa e que, pelo contrário, foi vítima. Note-se que grande parte das vítimas de abuso sexual são adolescentes, as quais teriam seu desenvolvimento pessoal interrompido com uma gravidez forçada e que as impediria de esquecer um momento imensuravelmente traumático”, completa a advogada.
SUS vira órgão vigilante
“Artigo 4º — O SUS promoverá políticas de apoio e acompanhamento da gestante vítima de violência para auxílio quanto à salvaguarda da vida e saúde da Gestante e da criança por nascer”, diz o Estatuto. Mas, pera aí: se atualmente o SUS já garante o apoio às vítimas de violência sexual, o que esse termo do projeto traz de novo? Uma margem legal para vigilância das mulheres que carregam um feto fruto de violência sexual. Ou seja, o sistema público de saúde, legalmente, deixaria de prestar apoio para interrupção da gravidez, passando a colocar em primeiro lugar a gestação do nascituro, tratado, mais uma vez, pelo termo “criança”.
“Em sua justificativa, o Senador que propôs o projeto discorre sobre a garantia dos direitos fundamentais da gestante e também do nascituro. Esquecem-se, porém, que esses Direitos elencados no Estatuto já existem e que as alterações propostas ferem o direito à Dignidade das Mulheres, fere o direito à Autonomia dos corpos, fere o direito ao mais alto patamar de saúde pública do SUS e representam uma ameaça aos Direitos Sexuais e Reprodutivos das meninas e mulheres do Brasil. De forma objetiva, esse PL tira o Direito à mulher que sofre um estupro, inclusive já garantido pela Lei do Minuto Seguinte, de se socorrer de profilaxia contra as ISTs e da pílula do dia seguinte para evitar uma gestação indesejada”, afirma a Dra. Veronezze.
por que “bolsa estupro”?
O “Estatuto da Gestante”, como mencionamos, obriga nas entrelinhas que a gestação fruto de violência sexual prossiga. Sendo assim, o que torna este projeto voltado para a gestante, se o objetivo é mesclar legalmente os termos “bebê” e “nascituro”? A resposta está no artigo 11: “Na hipótese de a gestante vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará com os custos respectivos de um salário-mínimo até a idade de 18 anos da criança, ou até que se efetive o pagamento da pensão alimentícia por parte do genitor ou outro responsável financeiro especificado em Lei, ou venha a ser adotada a criança, se assim for a vontade da gestante, conforme regulamento”.
“Ele visa dispor sobre o Estatuto da Gestante, o que passa uma ideia de proteção da gestante, quando na verdade ficou conhecido popularmente como ‘Bolsa Estupro’ por ter um apelo financeiro que se assemelha a uma política assistencialista que passa a ideia de que os corpos das mulheres podem ser comercializados ou precificados”, afirma a advogada.
estuprador ganha direitos de pai
Para quem leu o artigo 11 com mais cautela, percebeu uma outra informação: o genitor (nome utilizado no projeto para nomear o autor de violência sexual), é obrigado pelo Estatuto a pagar pensão alimentícia, visto que só diante desta impossibilidade o Estado arca com esses custos. Acontece que este é um outro trecho do projeto com margem problemática, visto que o autor do estupro pode ser tratado como alguém com direitos de pai, criando um vínculo, mesmo que por meio do depósito financeiro, com a pessoa que sofreu violência sexual.
“Esta vinculação de um criminoso à família da vítima é completamente inconstitucional, já que fere a liberdade de constituição familiar. Obriga uma mulher a se vincular estruturalmente à família do seu estuprador, inclui uma vida de forma forçada ao seio de uma família, sem que essa família possa ter autonomia para escolher ou não cuidar dessa nova vida.”
adoção é a melhor opção?
O Estatuto apresenta uma única opção para as vítimas que não desejem ser mães após violência sexual, a adoção. “O projeto de Lei também é cruel ao sugerir que uma mulher deva obrigatoriamente gestar o feto não desejado e que ao final, poderia encaminhar seu filho à adoção. Falam como se esse processo de gestar e parir um ser humano não fossem o processo mais complexo emocionalmente pelo qual uma mulher pode passar. Não oferece auxílio biopsicossocial para a vítima, apenas a consideram uma incubadora desprovida de emoções ou sentimentos”, finaliza a Dra. Veronezze.