O que é consentimento? A resposta curta é dizer que se trata de uma situação em que você tem autorização de alguém em relação à determinada ação ou objeto, sendo, portanto, sinônimo de “autorização” em diversos casos. Porém, quando se trata das nossas relações sociais e sexuais, o consentimento é mais complexo – apesar de ainda continuar sendo uma questão bem objetiva.
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Ter o consentimento de alguém é ter o “sim” ou “não”, acontece que nem sempre uma dessas palavras é dita, ou ainda, muitas vezes uma pessoa diz “sim” mas, no fundo, gostaria de dizer “não”. Ter “liberdade” com alguém, ser próximo, pode significar também que alguns limites existam, mesmo que nem sempre mencionados. Estar em um relacionamento não dá direito do outro sobre os nossos corpos e mesmo dentro de uma relação afetiva fixa e monogâmica, retirar o preservativo sem autorização do outro é errado, pior, crime.
É válido pensar nesta questão para aprender a se expressar de maneira mais objetiva, dizer “não” quando é preciso, ouvir mais nossos sentimentos para compreender quando fazemos algo por pressão, por exemplo. Porém, não podemos esperar essa reflexão do próximo, pelo contrário, é preciso inteligência emocional e empatia para notar quando existe um receio do outro mesmo quando o sim é dito.
Um “sim” pode ser “não”, o “não” deve ser sempre “não” – essa ideia sobre brincadeira e charme é machismo para justificar violência.
o que a lei diz sobre consentimento?
Marília Golfieri Angella (@mariliagolfieriangella) é sócia e fundadora do “Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social”, especialista em advocacia familiar, direito da mulher e da criança e do adolescente, praticando escuta ativa, com acolhimento, sempre focando em resolver o problema da melhor forma possível. Conversamos com a advogada sobre a definição de consentimento em nossa legislação.
“Consentimento é a autorização livre e espontânea para a prática do ato sexual, sem que seja oferecida qualquer resistência. A pessoa não pode se sentir intimada, violentada, seja de forma física ou emocional, nem mesmo envergonhada ou coagida a praticar sexo ou outro ato de cunho sexual. Ou seja, não existe ‘forçar’ para a pessoa aceitar ou ‘continuar tentando’ para que ela ceda! Não é não”, responde.
Uma questão muito discutida é a necessidade de existir o “não” para que legalmente seja considerada a falta de consentimento, entretanto, segundo a doutora Golfieri Angella, a interpretação nos processos pode levar em conta essa luta feminista pelo reconhecimento de que nem sempre a vítima chegou a mencionar a palavra – mas nem por isso o episódio deixou de ser um abuso.
“Essa é uma questão polêmica, principalmente quando observamos o viés machista da construção legislativa e da própria atuação do Sistema de Justiça na proteção da integridade física e emocional feminina nos casos de abuso sexual ou estupro. O ‘não’ dito de forma expressa certamente aponta para a prática criminosa, mas a mera omissão da mulher, passividade durante o ato sexual, a depender do contexto, pode ser interpretado como um ‘não’, ainda que não manifestado de forma objetiva. Lembrando que o sexo consentido com a prática de um ato não desejado, é também estupro”, pontua.
A advogada ressalta que as vítimas podem, desde 2018, ter seu sigilo garantido por todo o processo quando se tratam de crimes sexuais. Além disso, Golfieri também frisa que não existe dar ou não consentimento quando estamos falando sobre pessoas de 14 anos ou menos – é crime. E, mesmo que a pessoa tenha 15 anos ou mais, quando se tratam de pessoas sem capacidade para consentir, também estamos diante de um crime.
estar bêbada valida o “sim”?
A doutora lembra que dar o consentimento depende da capacidade de consentir. “Nestes casos, a mulher não tem condição momentânea de expressar seu consentimento de forma livre e clara, nem mesmo de oferecer, de forma adequada e proporcional, a resistência contra a prática do ato caso não o queira. Por isso, sempre que reduzidas as capacidades da outra pessoa durante o ato sexual, o caso precisa ser avaliado com esta informação para que seja avaliada a vulnerabilidade da vítima”.
conflitos sobre consentimento dentro de um relacionamento
A falta de consentimento também ocorre entre relacionamentos fixos, de anos – e nem por isso deixa de ser um crime.
“A mulher foi vista como objeto por anos, até mesmo perante a legislação. Por exemplo, antes do Código Civil atualmente vigente, que foi promulgado somente em 2002, a mulher casada era uma pessoa relativamente incapaz para determinados atos (CC/16, art. 6º). Elas não podiam trabalhar sem anuência do marido, não podiam administrar os bens da família quando ele estivesse presente (CC/16, art. 251) e nem mesmo receber a herança de sua família (CC/16, art. 242), pois o marido era considerado o chefe da sociedade conjugal (CC/16, art. 233)”, explica a advogada fazendo referências ao código civil.
Se você conversar com mulheres mais velhas ou mesmo ver desabafos de meninas adolescentes em grupos de Facebook, vai se deparar com uma série de situações em que parceiros, homens na maioria das vezes, tomam atitudes inaceitáveis sem o consentimento de suas namoradas ou esposas. Retirar a camisinha ou registrar momentos íntimos, sem consentimento, são alguns exemplos bem comuns. A doutora Golfieri lembra que atualmente ambos os casos são crimes.
“stealthing”
“Tirar o preservativo durante a relação sexual sem consentimento é crime. A conduta que será averiguada é justamente a falta de consentimento da outra pessoa para esta prática. Isso porque ninguém pode ser forçado ao ato sexual sem proteção e segurança e sem que haja transparência, confiança e respeito na relação estabelecida. Foi cunhado até um termo em inglês para tal prática, que é o ‘stealthing’”, explica.
“Chamamos atenção aqui à necessidade de haver difusão desse conhecimento até para que a pessoa violentada possa ter acesso ao SUS (Sistema Único de Saúde) para medicamentos que evitem doenças sexualmente transmissíveis ou, nos casos de mulheres, para que possam evitar uma gravidez indesejada, bem como para que o autor possa ser investigado e punido”.
fotos e vídeos sexuais
“Ainda que a pessoa não divulgue para terceiros, o mero registro de fotos ou vídeos, por qualquer meio, da nudez de outrem, do ato sexual em si ou qualquer outro ato de caráter íntimo e privado, sem o devido consentimento, pode ser tipificado como crime. Nesses casos, quando há o relato por parte da vítima, pode ser feita a apreensão dos aparelhos eletrônicos do averiguado para a investigação. E, ainda que haja consentimento na obtenção do registro, a posterior divulgação, venda, troca, publicação, ou outra forma de exposição, sem consentimento, é também uma conduta criminosa“.
“Quando já há este ato de disponibilização do conteúdo, a vítima pode se valer de prints e atas notariais feitas em Cartório para que o link não expire ou seja tirado do ar, para confirmar a prática do crime perante a Polícia”, completa a advogada.
quando estranhos não sabem o que é consentimento
Além de lidar com o desrespeito de parcerias, mulheres também lidam com a importunação de estranhos, e nem sempre em ambientes de festas, visto que é muito comum ter que lidar com esse tipo de situação no transporte público, por exemplo.
“O crime de importunação sexual é justamente a prática, sem anuência e consentimento, de qualquer ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou de terceiros, podendo ser ato libidinoso, por exemplo, o ato de passar a mão em partes íntimas ou ‘roubar um selinho’. Ou seja, se não há consentimento, entendemos que a liberdade sexual da vítima foi afrontada, merecendo atenção do Estado para sua investigação e punição do ato criminoso“, finaliza Golfieri.