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Gay, negro e periférico: Samuel Gomes fala sobre seu novo livro, “Guardei No Armário”

Gay, negro e periférico: Samuel Gomes fala sobre seu novo livro, "Guardei No Armário"
Gay, negro e periférico: Samuel Gomes fala sobre seu novo livro, "Guardei No Armário"

No final de setembro, Samuel Gomes, selecionado no ano passado como um dos Top Voices do LinkedIn, lançou seu livro Guardei No Armário: trajetórias, vivências e a luta por respeito à diversidade racial , social, sexual e de gênero, publicado pelo grupo Companhia das Letras. Com uma linguagem sensível, Samuel – que também é criador de um canal no YouTube com o mesmo nome que o livro – fala sobre sua própria vivência como homem negro e gay, não apenas refletindo sobre essas questões no mercado de trabalho, mas também dentro de uma sociedade racista e preconceituosa.

Nascido e criado na periferia, em meio a uma família religiosa, Samuel narra sua luta para estudar e dá detalhes sobre o seu processo de autodescoberta. Além de sua trajetória pessoal, o livro conta com entrevistas inéditas – feitas pelo próprio autor – de diversas personalidades LGBTQIA+ brasileiras, que, assim como ele, abriram seus armários e compartilharam com o mundo suas história para fora deles.

Em entrevista à todateen, Samuel comentou sobre o seu passado e sobre o processo criativo para escrever o livro.

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Confira!

Você, com uma linguagem simples e sensível, consegue gerar empatia e se comunicar com as pessoas. Quando foi que você decidiu criar um canal de YouTube?

Decidi fazer o canal quando ainda estava no processo de escrita do livro que foi antecessor a esse. Eu já tinha entendido que ele não deveria ser visto como um manual de saída do armário, mas sim um recorte específico de uma vivência no país que mais ameaça a existência de pessoas como eu: negro, LGBT e periférico. Sou formado em Design Gráfico graças às políticas públicas de inclusão de pessoas pretas e periféricas na faculdade. Isso me deu base e conhecimento para fazer tudo que eu faço hoje. Tive acesso aos dados da professora Regina Dalcastagnè da UNB, com o reflexo da diversidade na literatura, isso é visível em outras esferas e não seria diferente no Youtube. No começo do canal, eu nem aparecia nos vídeos por medo de sofrer racismo pela minha pele escura. Fiquei dois anos só entrevistando as pessoas LGBTs, mas não aparecia. Depois que consegui vencer o racismo que me aprisionava, consegui mostrar vários outros novos quadros além do de saída do armário, que é o carro chefe.

Como você começou a se interessar pela escrita e pela literatura?

Pela leitura acredito que veio ficar mais forte a vontade quando descobri os livros do Sherlock Holmes. Acho que foi o primeiro livro que me prendeu ao ponto de me transportar pra um outro universo. Na infância eu era quase como obrigado a ler a Bíblia, mas era mais por conta da igreja, então nem conto. Os livros que fui lendo quando comecei a estudar sobre quem eu era, foram os pilares para minha vontade de ler ainda mais. Achei livros de psicólogos que falavam sobre sexualidade, romances, científicos, auto-ajuda entre tantos outros. Eles me deram a base de quase tudo que entendo sobre minha homossexualidade. Tive acesso a literatura negra faz bem pouco tempo, acredito que bem poucos anos. Esses livros também tem me fortalecido enquanto homem negro brasileiro, periférico e gay. Escrever veio como uma necessidade de expulsar as angústias que me engasgava durante meus dias. A escrita foi o único recurso para não me matar. A escrita foi a única forma de colocar pra fora o que meus amigos crentes não queriam ouvir, foi a forma que encontrei de falar sobre coisas que muitos não queriam entender. A escrita me deu paz, a escrita me conectou com pessoas, a escrita me fez ter amigos e me mostrou que não sou uma abominação, mesmo que alguns insistem em dizer o contrário.

De onde veio a ideia de compilar todas as suas experiências em um único livro?

Ela veio da dor que sentia de nunca me ver representado nos livros que lia, nos filmes que via e nas novelas que assistia. Convido ao leitor me apresentar os últimos 5 livros lidos de autores negros. Eu mesmo não tinha esse número pra falar na época, somados a minha sexualidade, muito do que eu lia eram traduções de obras gigantescas vindas de fora. Já tinha registrado parte da minha trajetória num blog. Dessa forma foi mais fácil montar uma linha do tempo. Esse blog eu construí quando me vi só e precisava registrar tudo que aprendia ou vivia em relação a minha sexualidade. Foi lá o meu cantinho seguro. Lá que escrevia todos os meus textos e aos poucos fui sendo conhecido por ele. Frequentava uma ONG chamado Projeto Purpurina no centro de São Paulo. Essa ONG criada pelo Grupo GPH (Grupo de Pais de Homossexuais) liderado na época pela doutora Edith Modesto, me acolheu quando eu ainda nem entendia que quem eu sou é totalmente normal. Lá aprendi tanto sobre a vivência LGBTQIA+, toda a luta necessária para manter nossos direitos. Tive referenciais positivos de como é a vida de pessoas que não seguem um padrão exigido das sociedade.

Sendo um homem gay, negro, ex‑evangélico e periférico, como você acha que “Guardei no Armário” auxilia outras pessoas?

Pouco se fala na saúde mental das pessoas periféricas. O meu livro auxiliará pessoas que se identificam com a minha vivência entender que elas não estão erradas ou condenadas. É preciso falar sobre o perigo que é você viver uma vida de exclusão social e financeira, vivendo sob o jugo religioso ( porque na periferia não tem tantos consultórios terapêuticos como igrejas ) pela sua orientação sexual ou identidade de gênero. Esse livro não é só para homens negros gays. Esse livro são para todos que querem de fato entender um pouco sobre alguns assuntos como negritude e reconhecer o racismo dentro e fora das instituições. É sobre perceber que a intersecção de vivência nos dá outros resultados e muitas vezes ainda mais graves. Para além do que conto neste livro, ele é importante por existir no país que mais mata LGBTQIA+ e pessoas pretas no mundo.

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Como o fato de você vir de um ambiente bastante religioso impactou na sua vida?

A criação em uma ambiente religioso pode ter me trazido alguns benefícios, mas acredito que todos eles são valores que não depende de uma bíblia para acontecer. São valores que carrego pra mim e que vejo em várias pessoas que me inspiram. Dito isto, preciso mencionar os traumas que essas instituições causam na mente de seus fiéis que acreditam fielmente no que é dito nestes púlpitos. Eu tive acesso a histórias reais de pessoas que tiraram suas vidas, foram expulsas de casa, tem traumas gigantescos e hoje tem transtornos psicológicos por conta do abuso sofrido nessas igrejas. Imagina só você crescer sendo uma pessoas com medo de ser quem é, com medo de perder o amor incondicional que você aprende na escola que não tem fim. Viver todos os dias pedindo pra ser “curado” de algo que não tem cura. Pedindo perdão por existir a cada respiração e não se sentindo digno de felicidade, pois a própria existência configura num “pecado”. Às vezes acho que as pessoas ainda não tem dimensão do quanto isso é doloroso ou se sabem, tem tanto medo de cutucar esse terreno porque sabem que dali sairão o pior lado do ser humano. Héteros dificilmente saberão o que é entender que o amor de quem criou não existe de uma hora pra outra. Olhares que mudam, empregos se perde, relacionamentos não vingam, a vida algumas vezes têm mais dificuldades de prosperar. Tudo isso por conta da LGBT fobia sofrida por pessoas que poderiam estar contribuindo genuinamente para um futuro muito melhor do que estamos vendo. São pessoas como eu, mas que talvez não tenham achado um pouco de força para seguir caminhando e ainda estão no armário. Eu sofro ainda os impactos dessa criação vendo o resquícios dela ainda aparecendo nas minhas falas, frases, pensamentos e atitudes. É uma luta constante, mas vale a pena.

Como profissional da área da comunicação, no que diz respeito à diversidade de pautas na mídia, quais aspectos você acha que ainda tem que ser melhorados?

A diversidade na mídia ainda não reflete o que é o Brasil. Somos um povo majoritariamente negro e ainda assim temos campanhas falando sobre inclusão e diversidade, colocando uma ou outra pessoa apenas e de uma tonalidade bem mais próxima da branca. Quantos negros de dread foram modelos de produtos de cabelo que vocês conhecem? Quantas pessoas periféricas ou que tenham em seus históricos uma vivência periférica estão nas mesas de decisões dessas agências que atendem grandes marcas? Levanto essas perguntas em minha resposta para fazer vocês entenderem que quando falamos de diversidade na mídia, precisamos falar de toda cadeia e não só do produto que sai como comercial. É por isso que vou na raiz. É por isso que proponho sempre um diálogo através de minhas palestras em agências e corporações. Falo com RH, com os líderes de equipe, com os liderados e se possível com toda a cadeia.

Na sua opinião, o que te deu força para enfrentar alguns dos percalços da vida?

A raiva. A raiva me moveu positivamente, pois tinha raiva de ter que ser condenado por pessoas que nem saibam da minha vida, nunca tinham se preocupado em pagar uma única conta sequer, me levar pra algum parque ou bancar meus estudos. Essas pessoas se colocavam como próximo de Deus, mas era um deus malvado, punitivo, condenatório, inalcançável, distante, bravo, sem piedade ou amor. Eu comecei a ter raiva de quem dizia que eu tinha que acreditar em um Deus assim. Tive raiva do grande medo que sentia de ir para o inferno, pois ele foi um dos condutores de várias travas sociais que enfrentei. Tive raiva de não ter me expressado quando sofri racismo na infância e adolescência, pois na época a igreja falava que era vontade de Deus um problema claramente estrutural e histórico. Dizem que a raiva não nos leva para um lugar bom e é verdade, mas saiba canalizá-la nas suas potencialidades. Ressignifiquei essa raiva e consegui liberar todo o amor que eu sinto por ser quem sou. Penso que tudo que foi construído até aqui já tem feito muito mais do que pais e mães nesse país tão LGBT fóbico. Quem conhece o projeto Guardei no Armário, quem leu o livro, viu os vídeos ou já assistiu alguma palestra sabe o amor que é emanado dele. O que começou com uma raiva bem direcionada virou um grande campo florido de amor onde os meus iguais podem ter esperanças de serem felizes.

Ao narrar sua luta para estudar e seus processos de autodescoberta, você desmascara diversos problemas estruturais. Quais foram os principais desafios que você já enfrentou ao longo de sua carreira?

A maior dificuldade que ainda enfrento é investimento financeiros e recursos para poder aprender e desenvolver melhor meus conhecimentos. Durante anos me coloquei pra baixo me comparando a amigos meus do mercado. Eu só esqueci de fazer o recorte racial e social, pois quando você é o único da sua raça em um ambiente, você acaba não fazendo algumas ligações básicos. O acesso dessas pessoas com quem eu trabalhei sempre foi muito superior ao que vivi até hoje. Experiências fora do país por anos, estudos em ótimas faculdades e escolas particulares, possibilidades tecnológicas e de internet que é bem difícil de encontrar nas periferias. Basta lembrar que entrei em um curso que muitos diziam que não teria condições de finalizá-lo pois não só a matrícula mesmo com bolsa de 50% era caro, mas ainda tinha todos os materiais caros que sempre pediam. Muitos deles não começaram a trabalhar tão cedo como eu pra poder comprar minhas roupas, dar de presente para os meus pais ou mesmo ir numa lanchonete com alguns amigos. A grande parte desses profissionais que trabalhei, não faziam ideia da realidade de uma pessoa preta. Me tornei em 2019, LinkedIn Top Voices e isso veio como um troféu que vejo aguardando desde os 13 anos, a idade que comecei a trabalhar. Hoje estou com 32, faço 33 em novembro e apesar de ter conquistado algumas coisas até aqui, fico me perguntando e passo a pergunta pra vocês: Uma pessoa branca com a carreira e o conhecimento que já possuo, estaria em qual posição hoje em dia? A minha maior batalha é para nunca mais passar pela realidade difícil que já vivi um dia.

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A história que você conta em Guardei no Armário é extremamente forte e demonstra esperança. Qual a principal mensagem que você quer passar com a obra?

Quero mostrar a essa sociedade que é a diversidade que salvará esse mundo. Enquanto não ouvirmos pessoas pessoas dos ditos “grupos minoritários”, continuaremos errando muito. Nós só somos pequenos na representatividade política e nas conquistas, mas não em números e vivência. Estamos entendendo aos poucos o valor de nossas vidas, existências e posicionamentos políticos. Creio que só isso nos libertará dessa cultura colonizadora que vivemos. A obra tem como objetivo mostrar que é possível sim vencer o medo e ser quem é.

De onde veio a ideia de entrevistar outras personalidades para o livro?

A ideia de entrevistar outras personalidades veio do sentimento que carrego até hoje de falta de representatividade na literatura nacional tendo pessoas negras, periféricas e ou LGBTQIA+ na literatura nacional. Tive a honra de colocar as história dos amigos, colegas de trabalho e pessoas que me inspiram. Vocês entenderão o quanto nossas histórias se aproximam e se assemelham em vários momentos. Contar só a minha história talvez não fosse suficiente para que as pessoas nos humanizassem. O objetivo é para que nos vejam para além das letrinhas que falamos sempre. Boa parte do sofrimento de uma pessoa LGBTQIA+ é causado por pessoas heterossexuais, assim como boa parte do sofrimento de pessoas pretas são causado por pessoas brancas. Só conseguiremos mudar esse cenário se essas pessoas em questão tenham acesso ao que fazem. Por isso que a diversidade de personalidades é tão grande. A pessoa lerá o livro por admirar o trabalho dele ou dela, mas acabará envolto em um projeto que pra mim é um manifesto por sobrevivência.

Por ainda ser um grande tabu, acho que sempre que for possível, é interessante falarmos sobre a importância de profissionais da saúde e da mente. Pra você, quais foi a importância de conversar com psicólogos e psiquiatras?

Para começar a responder essa pergunta preciso informar a quem não leu o livro ainda que o primeiro profissional que entrei em contato para entender sobre minha sexualidade foi um psiquiatra. Nele pedi um remédio pra ser hétero. Veja só onde o fundamentalismo religioso e o medo de ir pro inferno causam nas pessoas. Ainda bem que ele era um profissional comprometido com sua profissão e me encaminhou para uma terapeuta que consegui ter minhas primeiras conversas sobre o que eu vivia. Anos se passaram desde essa experiência e hoje tenho uma relação muito forte com os profissionais que me atendem hoje dessas duas especialidades, pois eles conseguiram identificar muitos traumas causados pela vivência que tinha. Conseguiram me tirar muitas vezes de um lugar sombrio que levam vários dos meus ao suicídio. Meu desejo é que tenhamos muito mais profissionais atendendo a periferia, pois só assim conseguiremos emancipar suas mentes, permitindo que elas enxerguem sua realidade a fim de decidir o que é melhor pra eles.

Você pretende publicar mais livros? Conta mais sobre os seus planos para o futuro!

Pretendo sim. Fui apresentado a pouco tempo como Editor Convidado da Editora Paralela e nesse período vou procurar estudar muito mais sobre para avaliar quando será o melhor momento para um novo livro e qual o tema que irei tratar. Por enquanto quero fazer esse livro ser o mais vendido do Brasil.

Quer deixar uma mensagem para os seus seguidores e leitores? Fique à vontade!

Acredito que tudo que falamos será de grande ajuda e apoio pra quem ainda estava com dúvidas se comprava ou não o livro. Se chegou até aqui nessa entrevista é porque de alguma forma você ficou preso e interessado no que tenho a dizer. Te convido a me dar essa chance de te fazer entender sobre coisas que talvez você nunca tenha se perguntado. Pra você que é LGBTQIA+ que está dentro do armário, saiba que estou lutando para que você pare de sofrer por ser quem é, tá bom? E a todos que são e já saíram deles, esse livro também é pra você. Eu te dou certeza que você revisitar seu passado e dele colherá frutos muitos positivos.


O livro Guardei No Armário pode ser adquirido na Amazon e no site oficial da Companhia das Letras.

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